Noventa por cento de qualquer coisa

Difícil é saber com cem por cento de certeza o que exatamente é lixo e o que é luxo
Bráulio Tavares, escritor, compositor, letrista, poeta, dramaturgo e pesquisador de literatura fantástica
01/03/2012

Gosto bastante dessas leis e adágios que revelam o óbvio que as pessoas às vezes deixam de enxergar. A Lei de Parkinson, por exemplo, diz que “o trabalho sempre se expande a fim de preencher o tempo disponível para sua conclusão”. O Princípio de Peter afirma que “numa hierarquia, todo funcionário tende a ser promovido até seu nível de incompetência”. A Lei de Dick, “o traste tende a expulsar da casa o não-traste”, é uma paródia da Lei de Gresham, “a má moeda tende a expulsar do mercado a boa moeda”. A terceira Lei de Clarke garante que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”. A clássica Lei de Murphy, tão impregnada no cotidiano, diz que “se alguma coisa pode dar errado, com certeza dará”. E a Lei de Sturgeon, minha predileta, afirma que “noventa por cento de qualquer coisa é lixo”. Essa lei é o fundamento de todo e qualquer concurso, prêmio, eleição, competição, certame.

O mais divertido na Lei de Sturgeon é sua dinâmica fractal: depois de ativada não há como pará-la, o lixo continuará surgindo infinitamente, em escala cada vez menor. Pense no mercado editorial mundial. Noventa por cento de todos os livros publicados no ano passado é lixo. Impossível discordar disso. Estamos falando de milhões de títulos medíocres que, se não existissem, não fariam a menor falta. Porque, francamente, os dez por cento restantes, de alta qualidade, supririam um leitor onívoro por décadas. Mas se “noventa por cento de qualquer coisa é lixo”, isso significa que noventa por cento dos dez por cento restantes também é lixo, e assim por diante. Dinâmica fractal.

A Lei de Sturgeon está sempre em busca da máxima qualidade, da quintessência da inteligência humana. Seu imperativo é: damas e cavalheiros, a vida é breve, então esqueçam o lixo e se dediquem apenas ao luxo. Porém, no campo do subjetivo (da arte e da literatura), difícil é saber com cem por cento de certeza o que exatamente é lixo e o que é luxo. Jamais existiu ou existirá conformidade de gosto. Apesar da inalcançável unanimidade, as enquetes e as eleições tentam ajudar.

Se perguntarem a escritores, professores, críticos e jornalistas do mainstream quais são os melhores contos brasileiros já publicados, nessa seleção certamente aparecerão Missa do Galo, de Machado de Assis; Negrinha, de Monteiro Lobato; O homem que sabia javanês, de Lima Barreto; O pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião; Feliz aniversário, de Clarice Lispector; A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa; A caçada, de Lygia Fagundes Telles; Uma vela para Dario, de Dalton Trevisan; Feliz ano-novo, de Rubem Fonseca… Os especialistas do mainstream, mesmo lidando com uma produção tão vasta, quando convidados a votar sempre chegam muito perto da unanimidade.

Então me questionei se na ficção científica brasileira também existiria algo parecido com essa unanimidade. Um cânone já consolidado. Essa dúvida me motivou a perguntar aos escritores, professores, críticos e jornalistas apaixonados pelo gênero quais são os melhores contos brasileiros de FC já publicados.

A eleição foi bastante informal. Muitos eleitores usaram exclusivamente o critério afetivo na hora da escolha: votaram nos contos que marcaram fundo sua razão emocional. Outros preferiram o critério histórico e literário, elegendo as narrativas fundadoras, que estabeleceram as balizas do gênero no Brasil. Outros escolheram o contemporâneo, privilegiando a ficção curta produzida já no século 21. Três critérios bastante legítimos, em minha opinião.

Não havia uma lista prévia preparada por mim. Pedi a cada especialista que votasse em três contos, de tudo o que ele já conhecia*. O primeiro conto votado recebeu três pontos, o segundo dois pontos e o terceiro um ponto. Amigos gentilmente me avisaram que a unanimidade dificilmente apareceria. Foi o que aconteceu. Mas devagar foi surgindo na retina um desenho mais ou menos fixo, querendo permanecer. Os dez contos e os dez autores mais votados representam, talvez, o princípio da consolidação de um cânone. O resultado da eleição foi:

Os dez contos mais votados:

A escuridão, de André Carneiro (25 pontos)
A ética da traição, de Gerson Lodi-Ribeiro (20 pontos)
Eu matei Paolo Rossi, de Octavio Aragão (13 pontos)
Mestre-de-armas, de Braulio Tavares (13 pontos)
O homem que hipnotizava, de André Carneiro (6 pontos)
Pendão da esperança, de Flávio Medeiros Jr. (6 pontos)
Água de Nagasáqui, de Domingos Carvalho da Silva (5 pontos)
Assassinando o tempo, de Cristina Lasaitis (5 pontos)
Cão de lata ao rabo, de Braulio Tavares (5 pontos)
Um braço na quarta dimensão, de Jerônymo Monteiro (5 pontos)

Os autores mais votados:

André Carneiro (42 pontos)
Braulio Tavares (33 pontos)
Gerson Lodi-Ribeiro (25 pontos)
Octavio Aragão (14 pontos)
Fábio Fernandes (12 pontos)
Jerônymo Monteiro (10 pontos)
Ivanir Calado (10 pontos)
Cristina Lasaitis (10 pontos)
Fausto Cunha (8 pontos)
Carlos Orsi Martinho (7 pontos)

O aspecto mais divertido da Lei de Sturgeon é seu caráter duplo, sua sabedoria ingênua. De que “noventa por cento de qualquer coisa é lixo” estamos todos convencidos. Não há o que discutir. Mas isso não significa que estejamos todos de acordo em relação aos outros dez por cento. Muito pelo contrário. Brigas fratricidas já ocorreram e continuarão ocorrendo, no mundo da arte e da literatura, por conta desses misteriosos dez por cento. Mesmo o resultado de uma eleição informal como a que propus está longe de ser recebido passivamente por todos, sem qualquer questionamento. Isso é muito bom. É sinal de maturidade.

O jornalista e pesquisador Cesar Silva, um dos editores do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, opinou sobre a eleição: “Houve corporativismo na votação. Uma análise isenta colocaria textos de Roberto de Sousa Causo, Carlos Orsi e Fábio Fernandes entre os dez mais votados, especialmente Fernandes, um dos principais gurus da atual geração de autores da ficção científica brasileira. Comentando com a escritora e editora Ana Cristina Rodrigues, ela me disse que é porque Fernandes tem muitos textos bons e isso pulverizou a votação. Pode ser, mas pensar dessa forma levaria a supor então que os textos relacionados entre os dez melhores seriam os únicos realmente bons no portfólio de seus autores, o que obviamente não é verdade. Na minha opinião, acredito que isso aconteceu porque as relações no fandom são instáveis, a memória é curta e as opiniões flutuam ao sabor das simpatias de momento. Por exemplo, se a votação tivesse ocorrido há uns dois anos, Tibor Moricz provavelmente teria sido escalado na relação final pois, na época, ele havia ganhado um concurso de contos numa comunidade no Orkut e muitos afirmavam então que aquele era o melhor conto de FC que já haviam lido na vida”.

Moral da história: o processo de identificação de um cânone solicita vários instrumentos. Uma eleição informal é apenas um deles. Ela é bastante útil como pontapé inicial. Mas é preciso verificar também os prêmios literários, as antologias e os outros meios de legitimação literária.

* Votaram na eleição: Ademir Pascale, Alfredo Suppia, Álvaro Domingues, Ana Cristina Rodrigues, Arnaldo Pinheiro Mont’Alvão Júnior, Ataíde Tartari, Bruno Cobbi, Carlos Angelo, Cesar Silva, Clinton Davisson, Cristina Lasaitis, Daniel Borba, Edgar Indalecio Smaniotto, Edgard Refinetti, Fábio Fernandes, Fausto Fawcett, Fernando Moretti, Flávio Medeiros, Francisco Skorupa, Gerson Lodi-Ribeiro, Gian Danton, Guilherme Kroll, Hugo Vera, Ivo Heinz, Jorge Luiz Calife, José Carlos Neves, Lucio Manfredi, Luiz Bras, Luiz Roberto Guedes, Marcello Simão Branco, Marco Bourguignon, Marcos Vilela, Mary Elizabeth Ginway, Matias Perazoli, Miguel Carqueija, Mustafá Ali Kanso, Octavio Aragão, Rachel Haywood Ferreira, Ramiro Giroldo, Ramon Bacelar, Richard Diegues, Roberto de Sousa Causo, Rodolfo Londero, Rynaldo Papoy, Saint-Clair Stockler, Silvio Alexandre, Simone Saueressig, Sylvio Gonçalves e Tibor Moricz.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho