Aventuras da travessia

"Com esse ódio e esse amor", de Maria José Silveira, liga passado e presente através de uma ponte invisível
Maria José Silveira, autora de “Com esse ódio e esse amor”
01/03/2012

Com esse ódio e esse amor, de Maria José Silveira, é um romance que desenvolve duas narrativas, separadas entre si por séculos de história, diferenciadas pela formatação gráfica de suas letras e, ao mesmo tempo, intimamente ligadas por temáticas comuns. Uma narrativa contemporânea inclui outra, contextualizada no século 17, intercalada, capítulo por capítulo, à narrativa central. Sob o pretexto de ser um argumento cinematográfico, é contada a história de Tupac Amaru e a luta de libertação do seu povo. Trata-se de um herói épico que enfrenta desafios, comanda batalhas e acredita na força e nas crenças de sua gente. O entrelaçamento das duas narrativas vai se dando como um processo muito sutil na sua construção, tanto do ponto de vista sintático (coesão dos elementos textuais), quanto semântico (construção de sentidos). Num primeiro momento parecem apenas duas tramas independentes uma da outra. Mas é possível ir percebendo que uma ponte invisível começa a criar uma ligação entre elas.

Passado e presente vão se relacionando por vigas não muito concretas, mas suficientes para estabelecer seus elos. Enquanto o tempo histórico as separa, um tempo mítico as liga. O primeiro aponta o poder destruidor de Cronos, devorador dos próprios filhos, numa linearidade assustadora, na qual a morte é componente imprescindível. O outro em sua atemporalidade cíclica oferece o eterno retorno para a atualização dos mitos. É assim que Tupac Amaru, deus-serpente dos incas, continua nas lutas empreendidas pelos séculos que se seguem, apesar da morte física ou das derrotas históricas. Renasce no grupo guerrilheiro Tupamaros e, mais adiante, no presente narrativo, no grupo guerrilheiro Farc, marcados por novos contextos, que muitas vezes parecem desfigurar o mito original. É o caso da organização colombiana de hoje, por exemplo, que agrega em sua guerrilha o narcotráfico e os paracos (paramilitares).

Lela é uma brasileira que vai à Colômbia para construir uma ponte e acolhe o trabalho como uma promissora oportunidade profissional de engenheira em início de carreira. O livro começa antecipando um fato relevante para a trama. Através de uma matéria de jornal, ainda num prólogo, é anunciado: ENGENHEIRA BRASILEITRA SEQÜESTRADA NA COLÔMBIA. No primeiro capítulo, sete meses antes, a aventura de Lela começa, com sua chegada ao novo país. Entre novos amigos e colegas de trabalho, encontra Roque, homem sedutor e apaixonado por cinema, que lhe apresenta seu argumento para o filme que pretende realizar. É esse texto, ainda não transformado em roteiro, muito menos em filme, que ela começa a ler. A cada capítulo, a narrativa dentro da narrativa vai surgindo aos poucos, como leitura da personagem. Para nós leitores, o texto ganha força e parece correr paralelo à trama central.

É bom atentar para a existência de dois narradores. Um narrador onisciente domina e apresenta os acontecimentos, pensamentos e emoções dos personagens, jogando o foco, predominantemente, na protagonista Lela. Por outro lado, um cineasta conta a história de luta e de vida de Tupac Amaru, sua companheira Micaela e seu povo. Este último narrador é eloqüente e entusiasmado e tem também o domínio dos acontecimentos e emoções dos personagens, utiliza textos de outras narrativas como epígrafe de cada capítulo. Aliado a isso, ao final do livro encontramos uma bibliografia específica da história de Tupac Amaru, das lutas de libertação da América andina. Isso mostra, explicitamente, que o texto produzido para o cinema parte de uma pesquisa criteriosa daqueles fatos e relatos. A lista dos livros pesquisados pode ser lida como uma indicação de que o texto produzido não substitui os textos de origem, portanto, não se pretende histórico, embora parta daí. É um texto literário ficcional direcionando para a produção de outra linguagem artística, a cinematográfica. Exige pesquisa, ação, emoção, construção de imagens, etc. Essas imagens e toda trama incluem descrições detalhadas da natureza, valor importante para os antepassados incas, e elemento importante para construir a descendência dominada pela cultura colonizadora, mas fiel em alguns pontos, aos valores ancestrais. “Amaru, seu nome é o nome do Deus-Serpente, antepassado dos incas. Serpente que é a ponte entre as montanhas, o céu e a terra com seus habitantes, que assegura a comunicação de um com o outro, e serve à Água, fonte da vida. Tupac, seu título, é o título real daquele que resplandece.” O texto do argumento traz uma predominância épica, focada na luta coletiva de um povo, com algumas ressalvas. Ou seja, o nosso herói não é exatamente um Ulisses grego, guarda suas diferenças, que não cabem examinar agora.

No texto ligado ao presente, a dramaticidade do romance moderno toma corpo através da subjetividade dos personagens, principalmente da engenheira Micaela (mesmo nome da companheira de Tupac Amaru). Criada pelo padrinho e pelo pai frágil, abandonada pela mãe alcoólatra e adoecida, tenta construir sua ponte entre o amor intenso pelos números, pela profissão, pelos homens e pela vida e o ódio exacerbado pelo amor, pela mãe, pela morte. Para Lela, sem uma mãe presente, como se constituir como mulher, como amar o amor, se até ali ele representou dor e abandono, como construir uma ponte sem vigas de sustentação e a orientação necessária? Talvez essa empreitada seja seu maior desafio. Nem Freud, nem o Dr. Latorraca, seu analista, podem oferecer uma solução definitiva, apesar de darem algumas dicas.

Há aqui uma questão importante: como fica a construção da identidade desse sujeito descentrado contemporâneo? Para Tupac Amaru e seu povo a ponte criada com a natureza, seus deuses e ancestrais garante sua coragem para perseguir suas utopias, construir sua ponte entre esse amor e esse ódio. Para os jovens guerrilheiros das Farc, “a guerrilha lhes oferece comida, aventura e, sobretudo, objetivos: a sensação de propósito e pertencimento”. E para os veteranos da grande e oprimida latino América, as grandes narrativas totalizadoras ainda fazem o mesmo sentido?

A grande contribuição de Maria José Silveira, além da pesquisa histórica do nosso passado distante e tão próximo, é acionar a reflexão dos leitores para questões cruciais da nossa contemporaneidade. A história presente nos coloca entre esse ódio que nos ameaça e esse amor que nos mobiliza para a busca de sentidos, parciais, precários, mas ainda assim busca. Será a ficção, com seu papel instigador de discussão, mais uma ponte para a aventura sempre arriscada desta travessia?

Com esse ódio e esse amor
Maria José Silveira
Global
288 págs.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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