Em agosto de 2018 estreou no Rascunho a página Poesia brasileira, com inéditos de Marina Colasanti (depois reunidos em seu livro Mais longa vida, de 2020) e Raimundo de Moraes (por ele mesmo e seu heterônimo Aymmar Rodriguéz), dando-se aí o começo do desenho de um panorama que buscou manter em convívio no mesmo espaço poetas de diferentes gerações, regiões e expressões, a fim de mais e mais expandir também nossos horizontes de leitura da produção poética brasileira contemporânea.
A responsabilidade dessa curadoria, sempre maior que juízos ideológicos ou de gosto, tornou possível que cento e setenta e dois poetas, de vinte estados brasileiros, aparecessem reunidos nesse panorama, apresentando seus trabalhos inéditos, embora muitos deles donos de longa trajetória poética, talvez ainda pouco conhecidos dos leitores. Desse total de participantes, excetuando os artistas que também colaboraram com trabalhos visuais, uma aleluia literária: estão noventa e seis mulheres e setenta e seis homens — um panorama possível da poesia em que não se contam nos dedos as mulheres comparativamente aos homens.
De se contar nos dedos (de apenas uma das mãos), neste caso, felizmente, foram aqueles que, convidados, dispensaram participar dessa reunião não hierarquizada. Pois sendo sempre a Poesia brasileira um espaço dos poetas e para eles, haveria de se expandir seu horizonte por uma saudável noção de transversalidade, os autores lado a lado, novatos e veteranos, homens e mulheres, poetas de Norte a Sul do país, cada qual com seu vocabulário simbólico e sua dicção, apenas particularizando-se pelos próprios poemas, cuja publicação respeitou um único requisito: que fossem inéditos.
Estiveram assim reunidas, sem as viciosas e empobrecedoras hierarquias (dos “mais dos mais”) que tão bem conhecemos, muitas diferentes vozes, que ali cantaram por si mesmas, sem os discursos da crítica que — também sabemos — tantas vezes se lhes colam e sobrepõem. Sem legendas explicativas: apenas poemas inéditos, cada um com seu poder próprio de alcance, encanto, espanto, significando diferentemente a depender do mundo pessoal de referências, valores e inteligência sensível em que aportam.
Entre as riquezas inusuais e marcantes que encontrei ao longo dessa curadoria, a serem alcançadas desde a escuta dos poemas (e não de conceitos que lhes deitem em cima, subtraindo-lhes sentido mais do que acrescentando), de autoras que essa mesma rede de poetas, ao se alargar, iluminou, estão as obras de Mariana Paz, Maraíza Labanca, Bárbara Mançanares, Fátima Costa, Ana Maria Vasconcelos, Gabriela Sobral, Simone Teodoro, Luiza Cantanhêde, Samantha Abreu, Mariana Machado Freitas, Iolanda Costa, Fabíola Mazzini. Com a mais abrangente beleza de se apresentarem seus trabalhos, todos surgidos desde a última década (2010 em diante), ao lado de autoras já de longa estrada, como Marina Colasanti, Luci Collin, Leila Míccolis, Raquel Naveira ou Marize Castro.
Vale mencionar aqui, especialmente, a potiguar Diva Cunha, também de longa e formidável estrada, que, convidada, não chegou a figurar nesse panorama apenas por falta de material inédito. Menciono igualmente o paraense Vicente Franz Cecim, falecido em junho de 2021, que dois anos antes havia encaminhado para a Poesia brasileira um trabalho inédito — Canção de areia —, não sendo possível editá-lo sem lamentáveis cortes para fazer caber no espaço da página. Lembro ainda os que figuraram no espaço sem terem livros publicados, os que enviaram seus trabalhos por iniciativa própria, e escritores vindos da prosa, que se deram à poesia nesse espaço bem-vindo a seu exercício não necessariamente a caminho de um livro ou do desenrolar de uma trajetória no gênero.
Dos que fazem seu caminho dentro da poesia, muitos publicaram posteriormente em livro poemas divulgados nesse espaço, como Adri Aleixo (Das muitas formas de dizer o tempo), Marize Castro (Jorro), Socorro Nunes (As flores daqui são duras), Ângela Vilma (Talvez um blues) , Alexandre Brandão (O sol pelo basculante), Vanderley Mendonça (De amor & morte), Michaela V. Schmaedel (Quênia), Mariana Machado Freitas (Cães e astromélias), Cesar Garcia Lima (Bastante aos gritos), Cida Pedrosa (Solo para vialejo), Katia Marchese (Mulheres de Hopper) ou Maria Amélia Dalvi (Poema algum basta).
Alguns autores participaram da página com poemas e trabalhos visuais. Outros artistas também integraram o espaço, com trabalhos plásticos desenvolvidos ou selecionados a partir dos poemas inéditos, caso das ilustrações de Nelson Cruz, Raquel Matsushita, Lori Figueiró, Danilo de S’Acre, Beto Paiva, Leonor Décourt, Vitor Bossa, Marcia Gadioli, Daniel Banin, Alexandre Staut.
Mais poetas
Em novembro de 2020, edição 247 do Rascunho, a Poesia brasileira dobrou seu espaço, aumentando expressivamente a diversidade de poetas convidados. Em vez de dois ou três poetas por mês, a página passou a apresentar mensalmente cinco ou seis participantes, o que propiciou melhor visibilidade no exame do espectro temporal dessa produção, localizando aí o surgimento em grande número de novos e novíssimos autores entre 2010 e 2020.
Exatamente a metade do total de participantes ao longo dessas quarenta e cinco edições da Poesia brasileira, ou seja, oitenta e seis poetas, estreou nessa década (2010-2020). É também interessante localizar nesse período aqueles poetas surgidos durante a primeira metade de 2010 e os estreantes da segunda metade da década, ou seja, surgidos na cena poética poucos anos atrás. Outra grande incidência de poetas está entre os que estrearam durante a década de 1980 ou poetas ainda anteriores a esse período.
Uma leitura mais detida, agora do corpus poético composto por todas essas vozes, permite ver o quão presentes estão na poesia contemporânea o corpo e a casa sob a mirada cíclica do tempo. Canta um poema de Roberta Tostes Daniel: “Burilar esse pedaço/ de tempo, onde meu corpo/ deitou morada” (edição 241). Sem dúvida um motivo poético cuja recorrência se intensifica no contexto de mais de um ano e meio de pandemia, bem como a porção sáfara da natureza desse corpo, um voltar-se para as lições da terra, e também para as do céu: sim, os olhos dos poetas também se voltaram para o céu, desde as primeiras edições da página, com Fernando Paixão (“Insistente, o céu deixa de ser/ urna abstrata”, edição 223), passando pelos papagaios coloridos de Cristiano Moreira (edição 240), a “lua torta” de Socorro Nunes (edição 239), os sete planetas de Alexandre Marino “na órbita da estrela Trapista” (edição 250). Também inevitavelmente presente o calor político dessa poesia, a mais potente dela sendo sempre a menos óbvia e literal, que logra ir além das circunstâncias, a exemplo do já citado poema de Cristiano Moreira, o Cinelândia de Leila Danziger (edição 232), o excerto de Solo para vialejo de Cida Pedrosa (edição 234) ou contendas brasileiras de Fernanda Nali (edição 246). Mesmo o teor metalinguístico desse corpus aparece menos cerebral, aflorando em poemas de uma inteligência mais viva, mais sensível e encarnada, mais pulsante.
Um pouco da leitura desse panorama foi assunto da entrevista a André Argolo, no Conta + de Poesia Brasileira, do canal LabPub, no Youtube, em 30 de junho de 2021. Há também a página Poesia brasileira no Instagram (@pagina_poesia_brasileira), com o histórico de todas as edições, inéditos e informações sobre os participantes. Ainda serão publicados no Rascunho poetas anteriormente convidados que ainda não enviaram seus materiais. Deixo da curadoria da página devido a um novo projeto que me tem exigido total dedicação. Seria desejável que esse desenho continuasse a se expandir e se diversificar, com o timbre de muitas outras vozes. Que isso aconteça em todo espaço que reúna poetas brasileiros de ontem e hoje, e que, ao menos aí, na poesia, possamos ser sem guetos e hierarquias inúteis.