Enigma conjurado

"Tanatografia da mãe", de Isadora Fóes Krieger, abre-se para possíveis futuros, onde é possível se surpreender com as faces obscuras do amor e do ódio
Isadora Fóes Krieger, autora de “Tanatografia da mãe”
01/09/2022

Ler Tanatografia da mãe, de Isadora Krieger, em voz alta, reler, filtrar as imagens, decantar os sintomas e os fantasmas, e acabar com o livro encarnado nas mãos — das encarnações restantes da mãe e da filha, das relações permeadas por uma casa e seus objetos — é penetrar uma memória cosmogônica. Porque ler este livro é revolver reminiscências, é como cavar pelas próprias origens e descobrir possíveis futuros, é deparar com as perguntas feitas pela força vital e “a imprudência da infância”, e se surpreender com as faces obscuras do amor e do ódio. Um oráculo às avessas, a carta é enunciada desde o início, endereçada a quem aceitar incorporar o risco do enigma incontornável no encontro com os espelhos cambiantes, até descobrir que “envelhecer poderia ser somente mais uma maneira de tentar dizer: mãe”.

Sylvia Molloy, em seu ensaio sobre “corpo e livro em Victoria Ocampo”, tece a ideia do texto que se lê como um roteiro a ser encenado, uma palavra em repouso em busca de expressão. E a literatura e a escrita, enquanto “performance de leitura”, deveriam ser suficientes para unir em cena o “eu” e seu roteiro. Enfatizo aqui a “performance de leitura” porque os poemas, ou o único grande poema, de Tanatografia da mãe, inscreve-se-em-nós a partir de uma carta, e a partir de outras passagens entre o lido e o vivido. A mesma criança que brinca em silêncio e só, e que experimenta o medo e o fascínio pelo mar gelado e infinito, é a mulher leitora que enfrenta a mãe multifacetada em Marguerite Duras, Gabriela Llansol, Sylvia Plath, Michèlle Roberts, Melanie Klein, metamorfoseadas em leitura, loucura, sedução, desprezo, escrita, desincorporação. A autora performa na elaboração de sua escrita na medida em que recolhe os fragmentos de imagens da mãe, das leituras, da casa em decomposição, e empreende uma reincorporação da morte com “a fidelidade do corpo da filha ao declínio do corpo da mãe”.

Com delicadeza quase severa, os poemas conduzem à experiência do não saber, à falta de controle desse destino incerto do retirar-se quando a presença é tão viva e latente quanto os olhos do cão que sabia estar morrendo ou os olhos da mãe-em-mim. O luto que se ritualiza neste livro é ainda a cena de pervivência de uma mulher-esfinge, uma mãe-em-retiro, que persiste tão presente como a tentativa de desvendar a Mulher que Não Sei e mesmo Deus e a morte, através da linguagem. É uma despedida que não acontece, a não ser na própria escrita que nos conduz à procura de um centro, porque “Deus (ou a Mãe) é um círculo cujo centro está em toda parte e a circunferência em lugar nenhum.” Este verso é outro dos enigmas abertos à leitora ou ao leitor, e que segundo a poeta, pode ter sido escrito por Empédocles, Hermes Trimegistos, Santo Agostinho, São Boaventura ou Pascal. Isadora Krieger traz não apenas referências da literatura e da filosofia em sua poesia, como também o misticismo dos arcanos do tarô e elementos da psicanálise (porque afinal, está aí exposta e dissecada, a relação mãe-filha como “duas esfinges amando-se/desprezando-se”, interferências tangíveis do inconsciente e a teoria, em poesia, das pulsões). A espelhante questão que se repete por todo o grande poema-travessia, exige da autora que percorra os caminhos sempre como refém do mistério insondável do rosto da mãe-velha que se retira, e do seu próprio rosto, que letra a letra inicia sua transfiguração.

Lentidão e afeto
Evocando eventos oníricos e conclamando memórias ancestrais, a linguagem de extrema beleza do texto de Isadora proporciona uma experiência que confunde e borra a fronteira entre os gêneros. É poema em prosa, prosa poética? Ou poesia, simplesmente. Em seu livro anterior, Explorações cardiomitológicas (2018), a autora já deu mostras de sua aptidão e destreza no trato com a palavra. É uma poesia esculpida e laborada com lentidão e afeto, com escuta à memória e às reminiscências, com pesquisas demoradas em livros e sonhos, atenção aos sentidos e às imagens que perpassam os dias, o que pode ser averiguado a partir da leitura de seus poemas, e prescinde do conhecimento prévio de seu processo criativo.

Importante realçar que reunir eventos oníricos, pesquisas, leituras e a labuta com a palavra não necessariamente leve a um resultado satisfatório. Há um outro patamar, um umbral a ser transposto quando a escritora traduz o material sensível de sua coleta para o livro. E aí se faz a alquimia de Tanatografia da mãe. Volto à ideia da carta, anunciada na abertura do livro, e que percorre todo o texto. Recentemente, ouvi em um podcast uma fala de Eliane Brum sobre Bartleby, o escrivão, de Melville, esse personagem da literatura que persegue a muitos de nós, tão enigmático em sua simplicidade pura e tão irredutível à alienação. Eliane trouxe à cena a imagem da carta, lembrando que Bartebly teria sido um funcionário copiador da Repartição de Cartas Mortas, ou extraviadas, ou perdidas. Enfim, cartas que não alcançam seu destino, como a vida inconclusa do próprio personagem, ou de certo modo, se analisarmos com olhos contemporâneos, toda vida é uma carta morta, já que nenhuma existência alcança seu destino ou mesmo se completa, dando à morte a primazia da tragédia maior, a prova de que findamos sem nos completarmos. A carta de Isadora Krieger, no entanto, embora se inscreva apenas como promessa incompleta de um destino, chega a nós leitoras, leitores, como experiência inelutável de poesia, lugar em que “mesmo que a fogueira torne-se cinzas nós continuaremos a leitura pausada do Amor”.

Tanatografia da mãe
Isadora Fóes Krieger
Editora da Casa
118 págs.
Isadora Fóes Krieger
É poeta e romancista. Com Explorações cardiomitológicas (poesia, 2018), foi semifinalista do Prêmio Oceanos. É autora, entre outros, de O wi-fi da igreja é muito fraco (novela, 2017) e Memória da bananeira (romance, 2014). Ministra a oficina de escrita Ocultismo, Delírio e Kosmos.
Luciana Tiscoski

É jornalista e escritora. Mestre e doutora em Literatura pela UFSC. Com o coletivo de poetas mulheres Abrasabarca (Florianópolis) participa dos livros Abrasabarca (Medusa, 2018) e Revoluta (Caiaponte, 2019). É autora da coletânea de contos Área de broca (Nave, 2021)

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