“Não é que o tempo diminua a saudade, o que ele faz é diluir a memória.” Essa frase, que aparece quase no final do romance, resume para mim a essência temática na mesma medida em que espelha o principal aspecto do projeto formal de Não fossem as sílabas do sábado, de Mariana Salomão Carrara. Explico: por um lado, a frase condensa em poucas palavras o drama do luto enquanto embate tanto com a perda real como com o apagamento do outro, que passa a ser também o apagamento de si mesmo porque a partida daquele acaba levando parte de uma memória conjunta. Por outro lado, este formular o que não se deixa reduzir a uma fórmula é o que se ressalta como característica marcante de um livro repleto de fabulações e reflexões contundentes, num texto que se propõe mais do que simplesmente contar uma história.
O enredo
Depois da morte súbita do marido, André, Ana se vê na obrigação de gestar o lar e cuidar sozinha da filha órfã. Num prolongado estado de choque, ela precisa reaprender a se movimentar pela nova realidade como pelos espaços e entre os objetos que dividia com o esposo, precisa interagir com os móveis que “falam” de André e de sua promessa de felicidade conjugal o tempo todo, tem que aprender a lidar com a babá, Francisca, que parece mais propícia para a tarefa de mãe do que ela própria, além de se confrontar com Madalena, a vizinha, viúva do outro homem envolvido no absurdo acidente. Uma difícil e ambivalente relação vai sendo edificada aos poucos entre as duas mulheres, unidas e separadas pelo mesmo abandono.
A partir da descrição do acidente, logo nas primeiras páginas, todo o texto se constrói sobre a busca de uma língua para expressar o luto e essa busca se organiza como a partitura de um desmantelar-se. Composto quase como um cânone de uma pessoa só, um canto coral no qual as várias vozes da mesma personagem se alternam e se contrapõem, o romance é o entoar da despedida em modulações. A história flui em desdobramentos, o argumento é repetido sucessivamente em tempos diferentes numa espécie de correria atrás dos próprios pensamentos e emoções.
Para além da trama, o livro vive de fato dessa técnica narrativa transbordante, da linguagem a um tempo densa e caudalosa, pontuando um discurso que descreve a introspecção de uma protagonista em busca desesperada por palavras para expressar o inexprimível. E essa busca por uma língua do luto revela-se o trabalho de luto em si, só ela é capaz de ressignificar o vazio deixado pelo outro e sustentar a narrativa da vida que continua. É ela, a busca por palavras, que vai cunhar a ambivalência do “viver é deixar morrer”, e prender a leitora e o leitor, mais do que as ações e peripécias do enredo, mais do que o que acontece, até porque não acontece muita coisa, sendo todo o livro o relato da inércia exterior de Ana, em oposição ao seu incessante fabular interior, seu fluxo de consciência, um tombar infinito para dentro, como o fazem as sílabas dos sábados, “proparoxítonas tão escorregadias, todas as sílabas de todos os sábados tombando sempre”.
Alguns exemplos:
[…] era preciso revelar a cada almofada que dali em diante não havia mais o abraço dele…, era preciso explicar para as nossas bebidas guardadas, era preciso que eu parasse de descobrir logo novos detalhes do André, [….] André morto de repente me revelando uma obsessão por estocar pastas de dente, guardar meias dentro dos sapatos, é necessário que um apartamento morra junto, não se pode deixar que sobreviva porque tudo toma um ar fantasmagórico […]
Ou, um pouco mais adiante:
Ainda pedia licença aos móveis para entrar nos seus domínios, todos doloridos no luto amadeirado, era perigoso ficarmos ocos se não respeitássemos nossos espaços.
Estratégia que se manterá por toda a extensão do romance, esse rondar pelo espaço acompanha os movimentos da narrativa: ela tateia, descreve a falta dando voltas em torno dos sinônimos e antônimos do vazio; a narradora rodeia, contorna, cerca o discurso como faz com os móveis em casa.
Paralelamente, a história é contada em avanços e recuos que formam as estações de seu desligamento paulatino: há o encontro com Madalena, a vizinha, e os sentimentos contraditórios em relação a esta mulher que, desde o primeiro confronto à porta aberta do apartamento, figura como tela de projeção para toda sorte de ressentimentos, alvo para a própria impotência e válvula de escape.
Há as cenas com a filha, Catarina, que confronta Ana com o abismo da maternidade, e a babá, Francisca, que escancara a sua incompetência.
Mas há também as lembranças de um passado antes da vida conjugal interrompida pela morte: a memória do próprio pai que se afastou dela quando ainda era uma criança, o primeiro luto, também forjado na narrativa do litígio.
E há o afastamento dos amigos, que não conseguem suportar o silêncio tirânico de Ana, um silêncio que cala todo o direito à alegria.
Porém, ao mesmo tempo que a narrativa da dor é flexionada a partir de suas variações, a sua superação é construída em mínimos passos através de um jogo de espelhamentos, numa tática de reconhecer o próprio sofrimento transferindo-a para o ambiente ao redor. É o que acontece, por exemplo, numa cena em que Ana, logo após o parto, observa por meia hora uma lagartixa quase imóvel preparando-se para dar o bote: o pequeno animal avança milímetro por milímetro e, no final, a presa voa.
[…] ficamos ali, a lagartixa e eu. Ela não se moveu mais, ficou encarando o vazio no lugar de todo o seu projeto de vida.
Este recurso estilístico de transferência da motivação interna para os movimentos do mundo real não só é poético, mas eficaz, pois não nomeia nem rotula, deixando espaço para uma leitura ativa, além de criar grande densidade textual.
Assim, Não fossem as sílabas de sábado revela-se um livro cheio de epifanias, no sentido mais prosaico do termo: uma súbita sensação de entendimento ou compreensão da essência de algo, como se a formulação final contida no texto fosse mera consequência de um raciocínio elaborado na cabeça da leitora e do leitor. E é aí que está o maior mérito da autora: com sua linguagem precisa e poética, ela nos leva a uma tal imersão no seu raciocínio que acreditamos que as conclusões são óbvias e são nossas. Esse procedimento me lembrou o método socrático da maiêutica, uma técnica de investigação feita com base no diálogo e que consiste em conduzir o outro a um processo de reflexão e descoberta dos próprios valores. Maiêutica, por sinal, vem do grego e significa “dar à luz”, sugerindo que o/a participante destes diálogos imaginários irá “parir” conhecimentos que já possuía sem que o soubesse.
Por coincidência, o livro termina com uma viagem a três à Grécia, Ana, a filha e Madalena, na qual a protagonista-narradora consegue formular a pergunta nunca feita à vizinha, enfim sua amiga, sua quase irmã. É o início da superação:
Doze, treze anos do meu lado, olho pela janela e mantenho a minha cara assim de costas, inacessível, enquanto pergunto, finalmente, quando talvez ela já nem precise,
— E para você, Madalena, como foi tudo isso?
Ela sorri, sabendo que com essa pergunta inauguro um mundo, o Miguel e muito mais, abro a única janela que de fato nunca abri, e teremos muitas horas de voo para conhecer tudo o que não suportei saber, se ela ainda tiver vontade de dizer, e depois de muitos mares inquietantemente transparentes para vermos escoar de nós esse luto acinzentado e denso.