O Inferno de Pedro Eiras começa em estrofes de três versos, visualmente fazendo referência aos tercetos do Inferno de Dante. Tendo escrito e publicado pela mesma Assírio & Alvim, em Portugal, também Paraíso e Purgatório, ele revela com bastante transparência com quem está conversando nestes textos. Nosso papo aqui é principalmente sobre esse livro de 2020, finalista do Prêmio Oceanos, que ganhou edição brasileira agora pela Assírio & Alvim do lado de cá do Atlântico.
Entrei no livro sem conceitos prévios, mas não demorou para me fazer a pergunta: será que deveria ter lido o de Dante antes? Será uma condição para ler esta obra mais apropriadamente? A Divina comédia, do século 14, ainda não li — e nem posso ter a cara de pau de dizer que foi por falta de tempo. Algo me fascina no Inferno de Dante, que é sua narrativa, mas algo também me afasta, que é o poema inteiro escrito com métrica e rima. As rimas obrigatórias me irritam, tenho este defeito.
O Inferno de Eiras é um poema livre. Um poemão, com 33 partes (o de Dante tem 34). E é mais reflexivo do que narrativo. Contém a ironia, a crítica social, de forma condensada, muitas vezes em sacadas bem precisas, para montar o que está colocado desde o começo: diferentemente do Inferno de Dante, que desce pelos círculos a outro lugar, numa jornada, o de Eiras é o aqui e agora, nestas pouco mais de duas décadas dos Anos Dois Mil:
Não poderia ser uma viagem mais curta:
nem um passo demora
ir aonde
já estás.
Não li o livro clássico italiano inteiro, mas tenho uma edição caprichada, com a qual passeei para estabelecer algumas conexões mais visíveis, na chave da curiosidade comum. Sou um leitor comum. E, respondendo à minha própria pergunta: não acho que é preciso ter lido um para ler o outro. Acabamos perdendo algumas referências, nada desastroso. A experiência de ler um ponto de visto do inferno nosso de cada dia é boa, mesmo sem a erudição do autor português.
A edição de Dante a que me refiro é uma da Abril, de 2010, com tradução de Jorge Wanderley, organização de Márcia Cavendish Wanderley, posfácio e preparação de Marco Lucchesi e textos complementares de Heitor Ferraz.
O eu-lírico criado por Dante se “desencontra” na vida, conforme a escolha desse tradutor, mais (im)precisamente no “meio do caminho desta vida”. Um poeta de quem gostava muito, Virgílio, o guia pelos círculos do inferno. O de Eiras é mais um entre bilhões de desencontrados, um eu-lírico ousado, que talvez se pretenda ser um pouco de todos nós:
Malgrado os mapas, as cartas astrais,
as sondas imponderáveis
vertidas nas veias,
[…]
chega sempre um instante, nas nossas vidas,
em que todos
nos perdemos.
O autor faz citações a pensadores, escritores e obras de todos os tempos ao longo do livro. Quando os versos trazem reflexões sobre nosso tempo atual, tendem a estabelecer mais fortemente o contato com quem lê. Intuo haver nas intenções de Eiras uma vontade de comunicar algo como: temos, sim, nossas questões próprias, mas não estamos, humanos, boiando no tempo-espaço da História. Ainda assim não me soa pedante nem salvador o texto, conforme o li. Ao contrário, eu o percebo mais irônico, chave que o torna muito interessante.
Há trechos de mais dura ironia, como na parte V (ou será que deveria chamar de Canto V?), quando trata de suicidas, e espeta os que não se mataram, a fazer pensar, quando tiramos os olhos do papel, se estar vivo e viver são a mesma coisa:
Os corpos resignam-se aos dias
para serem enterrados ainda vivos.
A mim parece que acabei de ler Drummond nesses versos… Faz sentido isso? Diria Drummond — e foi Eiras — também no trecho: “Chegou tão cedo o tempo/ das decisões difíceis,/ e ainda mal sabemos olhar/ esta luz indecisa tocando/ os esboços das coisas”. Que entendo eu? É uma impressão que serve de elogio, espero.
A crítica ao nosso modo de viver hoje segue no início da parte VI, ao escrever um “aqui moram os desesperados/ que aprenderam a respirar/ fora de água”, ou seja, ressaltando esse posicionamento de que vivemos o inferno já: aqui. E ele traz muito da velocidade desse tempo, da “notícia verdadeira da manhã/ foi falsa ao correr da tarde”, as mudanças radicais, das novas necessidades diárias de pelo menos uma parcela da população mundial.
Eis que só depois da página 63, numa manhã bem agradável de quinta-feira, após uma ótima noite de sono, tendo acordado mais tarde que de costume — portanto, mais descansado que de costume — me dei conta de me fazer outra pergunta: Inferno de quem, companheiro?
Sim, eu me identifiquei fortemente com este, de Eiras, professor universitário português, escritor, ou seja, alguém que, mesmo muito mais bem-sucedido, frequenta um círculo que eu também marginalmente piso, porque desejei e alcancei pisar. Mas há tantas realidades pelo planeta. O homem que neste momento puxa um camelo no norte da África, uma mulher que sai para trabalhar numa fábrica antes do amanhecer em Bangladesh vivem o mesmo inferno que nós? Nós, os putíssimos (ainda que com razão) com os desvios éticos dos algoritmos, enquanto tomamos café gostoso em nossas cozinhas bem equipadas e a geladeira cheia?
Não quero e não estou cobrando do autor este posicionamento. Não mesmo. Escrevemos o que vivemos, normalmente. Outra coisa é o jornalismo (ou o que deveria ser o jornalismo). Mas quis frisar esse pé no freio que ocorreu em minha leitura entusiasmada, pé no meu freio, uma consciência de que não represento, com minha vida, as de todas as pessoas. Longe disso.
Não o Minotauro — mas o algoritmo —
Compreender-te-á.
[…]
Ele sabe os nomes mais íntimos
Consultas, inquéritos, reservas e compras
As dúvidas nunca resolvidas,
Lentamente esquecidas,
Palavras-passe antigas,
Substituídas;
É sensacional este trecho, ou não é? Parte XV, página 52, amei, li para outras pessoas, dividindo minha admiração, do tipo: “olha como condensou bem esse incômodo que eu sinto”. Penso nas biografias que serão escritas de cada um de nós, pelos dados recolhidos, compilados, expostos, as biografias automáticas. Menos a do homem com o camelo, a da criança da aldeia no Congo ou em Minas Gerais, à beira de um rio que morre e o deixa com sede e sem peixe. O de Eiras é um certo inferno, não o absoluto. Nisso, o de Dante alcança mais, de partida, por ser uma jornada, por ser um sair do mundo, uma fantasia. O realismo, em qualquer gênero, talvez tenda a afundar o pé da autoria em datas, tempos históricos. Assim, este Inferno é livro para se ler agora, para gostar dele hoje, como gostei. Será candidato à fruição no ano 2724?