Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda
Se Deus é quem sabe por inteiro o risco do bordado, conforme diz a personagem de Autran Dourado, é possível que tenha entregue parte desse conhecimento a Antônia Zulma Diniz Dumont, natural de Pirapora. Antônia não recebe apenas o discernimento relativo ao risco decalcado no tecido e coberto com linhas, mas a amplitude de uma tradição cultural — o bordado clássico mineiro —, que ensinou às filhas e aos filhos, da forma como aprendera da mãe e da avó. A manifestação da habilidade, presente nos enxovais familiares e concebida como sendo, em geral, da ordem do feminino, costumava ser inerente ao adorno doméstico e assim apreciada. Há cerca de 30 anos, tal percepção é modificada, com esses bordados passando a ocupar páginas de livros e paredes de museus. O que aconteceu para isso? Que pontos são dados para o reconhecimento de expressão estética genuína, visível na produção do grupo Matizes Dumont?
Ao surgirem os primeiros livros ilustrados pelos bordados coletivos de Antônia e de suas filhas Sávia, Marilu, Ângela e Martha, feitos sobre desenhos do irmão e artista visual Demóstenes Vargas, o espanto foi natural: podiam ser considerados ilustrações, aqueles bordados? Podia se expor de forma tão pública o que até então se reservava à intimidade doméstica? Como o material dialogava com o texto verbal, em forma narrativa ou poética segundo o gênero literário, atendendo portanto ao requisito fundamental da ilustração, não havia dúvida por esse lado. Além disso, a beleza plástica era incontestável, e pleno, o domínio estético. Havia, portanto, novas ilustradoras e novo ilustrador dedicados à produção de livros para crianças com uma técnica inusitada. Jorge Amado, Thiago de Mello, Ziraldo, Marina Colasanti, Manoel de Barros foram alguns dos autores que tiveram livros ilustrados por eles. Telas extraídas do painel de Candido Portinari foram também bordadas pelo grupo, daí sendo gerado o livro Candinho e o projeto Guerra e Paz, com texto de Sávia Dumont.
No correr da produção de livros voltados à infância — grande parte premiados —, além de outros produtos e ações, nasce Matizes Dumont, grupo empenhado em dar “novos sentidos a esse milenar ofício” que “rompe com os padrões da técnica original. São misturas de matizes, tecidos e tessituras, traçados que se combinam em uma arte visual com características próprias. Inspirada na natureza e na diversidade da cultura brasileira, criam telas, arte, de profunda delicadeza”.
A arguta compreensão da mentalidade a modificar e dos espaços a ocupar conduz o grupo à promoção de caravanas culturais, como as viagens pelo rio São Francisco (1999 e 2000), os Encontros do Bordado Brasileiro (2015 e 2022), e de projetos sociais consistentes e arrojados, como a criação do Instituto de Promoção Social Antônia Diniz Dumont (ICAD), que contribui para a afirmação do ofício de bordar para muito além do campo das prendas domésticas. Alcançada a terceira geração de bordadeiras com a adesão de Luiza, Tainah, Luana e Leninha, a importância de Matizes Dumont para a arte, a cultura e a sociedade brasileira é patente. Novas produções vêm expandir essa presença, com a publicação recente de ensaios sobre a arte de bordar: O particular jardim de Antônia, de autoria de Sávia Dumont, e Harmonia das cores nos fios do bordado, de Marilu Dumont. Nesse contexto, surge o livro que crianças também podem ler: Maricota aprende a bordar, de Leninha Dumont, no qual se tem a extraordinária viagem de uma menina que conhece a diversidade de seu país, guiada em sobrevoo imaginário pelo risco e arte do bordado.
Originado na perspectiva do compartilhamento, tal como é dito na apresentação da autora e na fala final da protagonista, o projeto envolveu 36 bordadeiras, além da família. Maricota é o alter ego da menina que confessa: “Espiei! Eu vi minha vó Antônia bordando, minha mãe e tias bordando, minhas primas bordando, […] então eu fiquei com vontade de bordar!”. Conduzida pelo vento, encontrando a chuva, tomando carona na cauda do cometa e pulando, por fim, na cesta de um balão, a menina vê o Brasil e percebe, na exuberância de cores e traços, os aspectos físicos e culturais marcantes de cada região, apreendidos pela ótica da viajante.
O objetivo de informar os leitores sobre a diversidade do país sobressai na obra, de produção cuidada e de grande beleza plástica. A força narrativa e poética mostra-se concentrada na imagem, que o texto verbal acompanha, em reconhecimento e valorização do ambiente local. As cores vibrantes e as composições diversas dos traços — ou pontos do bordado — são bem destacadas e, ao final, esses últimos se apresentam com suas denominações e modos de fazer, sendo ressaltadas as possíveis diferenças de identificação nominal segundo a região.
A noção de pertencimento impregna a narrativa, em que Minas é nascente e estuário do curso do bordado, potente em sua capacidade de produzir e revelar mundos, para além da materialidade visível:
Passei pelo Centro Geodésico, uma paisagem sem igual. O que falar dos paredões rosados? Eles encheram minhas vistas de cenas imaginárias. Vi gigantes, vi reis e rainhas, vi um amor azulado registrado nas pedras róseas…
De inspiração autobiográfica, a obra traça o caminho da menina que hoje é bordadeira e permite tecer diálogos com duas personagens memoráveis. Em A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia, de Selma Lagerlöf, e A menina e o vento, de Maria Clara Machado, as viagens panorâmicas sobre o próprio país ou sobre o mundo produzem o amadurecimento dos protagonistas e o consequente engajamento em ações que respeitem o legado cultural e realizem transformações sociais necessárias à promoção humana.
A viagem de Maricota exalta a potência do país, que o bordado se encarrega de expressar, e é compartilhada em profissão de fé pela bordadeira. O ofício por ela exercido consolida-se como forma de estar no mundo, em recorte lírico da existência, exposição das “delicadezas mais internas de cada um de nós”, que este livro expõe a quem o lê, em especial atenção à criança.