Um chaveiro virou mania na China. É o seguinte: um cubo contendo um líquido, em seu interior (nada ou agoniza?) uma minúscula tartaruga da Amazônia. Diz o manual que o tal líquido contém nutrientes suficientes para a infeliz criatura sofrer durante um mês. Vencido o prazo de validade, joga-se fora e compra-se outro. É assim que eles ensinam a respeitar a vida. Mas calma, nós, da pátria das tartaruguinhas infelizes, não ficamos atrás. Até ontem carregávamos patas de coelho como chaveiro.
Desrespeito é nosso sobrenome. Olhos rasgados ou não, pouco importa.
Pois bem, os estudos culturais já não apresentam grandes novidades, chegamos aos dias dos estudos animais. O homem é um ser superior? Existe uma cultura animal? E a animalidade do homem, como se apresenta?
Enfim, adentramos o campo dos radicalismos. De um lado a facção que entende bicho como algo a serviço do homem e do outro a facção ultra radical que prega direitos iguais para bichos e homens. Creiam, tal facção existe. E o pior, não é formada exclusivamente por zé mané. Entre eles o radicalíssimo Paul Singer. Não defendo a crueldade, o desrespeito, seja com bicho seja com gente, mas essa onda de humanizar a bicharada, ora cômica, ora patética, carece de uma seriedade.
O X da questão não está na tartaruguinha do chaveiro, nem na baleia que dá show sem folga no parque aquático, tampouco está nos ratos de laboratório. O câncer que corrói qualquer ética, seja humana, seja animal, é o animal humano. A propósito, quantas espécies esses seres superiores já exterminaram?
Maria Esther Maciel organizou Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica, a continuidade do ainda incipiente estudos animais. Estudos que em O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contemporânea, de Maria Esther Maciel, apresentam ao leitor motivos para enveredar pela pesquisa acerca da presença do animal na literatura. O bicho além da metáfora. Um trabalho brilhante da professora Maria Esther. Por outro lado em Pensar/escrever o animal, a originalidade passa longe. Trata-se de um assunto no mínimo curioso, embora apresente um quase nada de novidade.
Mesmo assim cabe um elogio à Editora UFSC, que se mantém um passo à frente no quesito editoras universitárias.
Dividido em quatro seções, talvez por didatismo, essa reunião de ensaios beira a repetição enfadonha. Funciona como sugestão de leitura, visto que a maioria dos autores se socorre incansavelmente em Derrida, Levinas, Deleuze, Bataille, Heidegger, Foucault.
Citar Kafka, quando o assunto é humano se transformando em animal é banal. Por que não analisar Porcarias, uma fábula que deve, e muito, à Metamorfose de Kafka, nesse âmbito da transformação do humano em animal? Em Porcarias, Marie Darrieussecq apresenta uma vendedora que à medida que se prostitui com alguns clientes vai se transformando numa porca.
Mas isso também não é novidade, Ionesco já fizera. Antes, bem antes, Ovídio e sua Metamorfoses.
Por que não falar de Incitatus, o cavalo preferido de Calígula, nomeado senador?
Não, preservacionista leitor, o animal a ser estudado não são os que costumamos chamar de bichos, mas sim o animal humano.
O animal que J. M. G. Le Clézio mostra em Pawana, responsável por um terrível extermínio de baleias, o animal que Ana Paula Maia descreve em Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos:
Eu não seria capaz de matar um animal enquanto dorme — responde Erasmo Wagner.
Ele engole um pouco de sangue que sai de seu dente podre e dolorido.
— Gosto de olhar no olho dele. Pra entender por que está morrendo.
É esse animal cruel que merece ser estudado.
O animal que permite a cena que Manuel Bandeira descreveu. Atual… atualíssima:
Vi ontem um bicho
na imundície do pátio
catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
não examinava nem cheirava
engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
não era um gato,
não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Sim, o bicho humano, desrespeita, humilha, mata, tira proveito, mas alguns surpreendem.
Louis Ferdinand Céline, execrado por muitos, a quem este aprendiz considera dos melhores, no dia 17 de junho de 1944, deixa seu apartamento em Montmartre. Não se tratava de uma saída honrosa, longe disso, rumava à Dinamarca. Junto viajaram sua mulher Lili e o gato Bébert.
Celine?
Um gato?
Pois é…