Quem for à antiga rua Grande, em São Luís do Maranhão, encontrará uma tímida placa no canto de um sobrado hoje transformado em loja de roupas, na qual se podem ler estas palavras: “Nesta casa nasceu, a 8-10-1863, Catullo da Paixão Cearense, o grande poeta que soube interpretar, em versos bem representativos da intelligencia maranhense, a alma popular brasileira”. A placa traz a data de 11 de janeiro de 1940; o homenageado morreria seis anos depois, no Rio de Janeiro. Catullo morreu pobre, mas não esquecido: em seu “Palácio Choupanal”, no subúrbio carioca do Engenho de Dentro, recebia sinceros admiradores e célebres amigos — inclusive estrangeiros, como Salvador Rueda, o poeta espanhol, e Alfonso Ortiz Tirado, o mexicano que logrou alcançar sucesso como tenor (chegou a viajar por todo o continente americano e por alguns países da Europa como “embaixador lírico da canção mexicana”) e cirurgião (foi médico de Frida Kahlo).
Hoje, para a vasta maioria das pessoas, o autor de Luar do sertão é apenas isto: o compositor — único, segundo ele mesmo, embora hoje se reconheça ter sido João Pernambuco o autor da melodia — de uma das obras-primas do cancioneiro popular brasileiro; música magistralmente registrada por Luiz Gonzaga e Tonico e Tinoco, cantada por Marlene Dietrich quando se apresentou no Brasil, em 1959, e incessantemente destroçada por incontáveis “artistas”, supostamente populares, mas sempre a serviço da indústria cultural. Catullo talvez tenha sido quem mais lutou contra o seu próprio esquecimento. Notoriamente vaidoso, no fim da vida passou a exigir o reconhecimento público. Em 1940, por iniciativa sua foi lançada a campanha O tostão do povo, que lhe renderia um busto no jardim do Palácio Monroe, antiga sede do Senado Federal (o palácio foi estupidamente demolido em 1976; em seu lugar, há hoje uma praça, onde permanece o busto). Seu enterro, em 1946, foi acompanhado por uma multidão. Ainda assim, não foi poupado pela avara memória brasileira.
Se Catullo foi uma figura importantíssima para a música popular nacional, subindo de violão em punho as escadarias do Palácio do Catete para apresentar-se a Nilo Peçanha e a Hermes da Fonseca — como observou Câmara Cascudo, foi ele o responsável por transformar em instrumento clássico e prestigiado o que antes era denúncia de depravação artística —, produziu uma obra reconhecida também pelo mundo literário, ao menos em sua época. Mário de Andrade, em crônica no Diário Nacional, chegou a considerá-lo “o maior criador de imagens da poesia brasileira”; Carlos Drummond de Andrade, escrevendo sob pseudônimo (O observador literário), qualificou-o como “grande poeta do povo, intérprete da alma rústica dos sertões brasileiros”, em crônica publicada na revista Euclydes. Talvez Drummond só o tenha afirmado com essas palavras por havê-lo feito sob pseudônimo; conhecedor da obra de um poeta como Leandro Gomes de Barros, certamente sabia que Catullo fazia parte de outra família — a dos poetas que dialogam com a tradição literária, mesclando-a contudo com temas e formas populares, à maneira do que mais recentemente fez Patativa do Assaré. Ressaltou-o Bastos Tigre, ao destacar que o “poeta do sertão” era conhecedor da poesia de Victor Hugo e de Nicolau Tolentino.
Igualmente revelador é o fato de a nova edição de O lenhador, organizada por Francisco Marques, trazer duas versões do poema: a primeira, publicada na “língua do sertão” (como presente em seu primeiro volume de poemas, Meu sertão, de 1918); a segunda, em português formal (como publicada em Poemas bravios, de 1921). Para além das mudanças ortográficas e gramaticais, das quais derivam variantes necessárias para a preservação da estrutura métrica, Catullo altera o desfecho da obra. A primeira versão se encerra quando o lenhador malvado, que sem compaixão derrubava árvores centenárias, arrepende-se após o fantástico episódio em que dele se vinga a natureza — com troncos vertendo sangue ou transformando-se em braços —, convertendo-se finalmente no jardineiro querido pelas plantas: “E agora, quando passava/ junto das árvre, cantando,/ cheio d’água, carregando/ o seu véio regadô,/ as árvre, filiz, contente,/ que o lenhadô perduava,/ no jardinêro atirava/ as suas parma de frô!”. A segunda versão ganha mais algumas estrofes, encerrando-se com esta: “Quem, hoje, por alta noite,/ nas horas de mais ‘quebrando’,/ passa pelo Campo Santo,/ velho, triste e abandonado,/ vê um vulto pervagando/ de campa em campa, regando/ as flores do cemitério,/ onde ele foi enterrado”. Pode-se entrever nessa ênfase no episódio post mortem um elemento vinculante do sentido moral do poema à estética ultra-romântica, o que ressaltaria sua dimensão “literária”.
A poesia de Catullo, como aliás muitas de suas músicas, pode causar estranhamento à sensibilidade contemporânea — embora isso se aplique mais à vertente devedora da estética parnasiana do que às obras “sertanejas”; ainda assim, é louvável o esforço para resgatá-la, na medida em que implica o reconhecimento de um nome de indiscutível importância para a cultura brasileira. O livro de Francisco Marques realiza muito bem essa tarefa, sobretudo pela miscelânea que inclui, trazendo elementos biográficos, comentários diversos e uma pequena antologia. Cuidadosamente editado, com capa dura e ilustrações de Manu Maltez que representam com perfeição o sentido do poema, O lenhador é uma boa apresentação da obra Catullo da Paixão Cearense às novas gerações. Esperemos que Francisco Marques, admirador da obra de Catullo — como deixam nítidos os seus comentários presentes na obra —, dê prosseguimento ao resgate da obra desse poeta que, afinal, não escrevia apenas para o povo.