Outras ficções

Nas narrativas de "Vento sul", Vilma Arêas ensaia uma literatura muito próxima à tradição estabelecida por Borges
Vilma Arêas por Robson Vilalba
01/03/2012

Jorge Luis Borges tem Ficções como uma de suas obras mais célebres. Não é exagero afirmar que os textos que compõem o livro ajudaram a criar no imaginário coletivo dos leitores um Borges ideal, mais próximo de uma ficção experimental e, de certa maneira, do autor que se sentia mais à vontade como leitor do que como escritor. Coincidência ou não, a escritora Vilma Arêas também compôs suas ficções, reunidas agora no volume Vento sul. A seleta, conforme se lê nos Dados Internacionais de Catalogação na Publicação, pertence ao gênero conto — mais precisamente, Contos Brasileiros. Ocorre que, de alguma forma, a autora não parece conformada com a classificação, e daí as ficções no alto da capa do livro dão conta de um universo mais genérico, das ficções, proporcionando, talvez, uma proximidade com uma literatura que não tem vínculo com o real ou simplesmente configurando outro ponto de referência para o leitor desses textos.

Em Vento sul, com efeito, não há outra unidade possível nos textos que não seja a da presença da ficção como pedra de toque da literatura de Vilma Arêas. Ainda que nos dois primeiros textos Thereza e República velha, a autora cite nominalmente o “vento sul” como sinal de que mudanças extraordinárias estavam previstas na jornada das personagens, o leitor aprende que essa relação entre título e obra é por demais reducionista para dar conta do que existe nos textos seja do ponto de vista formal, seja numa análise mais hermenêutica dos contos da autora. Nesse sentido, cumpre observar a proposta de forma mais detalhada, uma vez que Arêas divide o livro em quatro partes: Matrizes, Contracantos, Planos paralelos e Garoa, sai dos meus olhos. A hipótese aqui é: talvez mais do que incomodada com a catalogação dos textos do ponto de vista dos gêneros, a autora estabeleceu uma ordem que pode servir para a identificação e entendimento das narrativas.

Assim, se nos textos de Thereza e República velha compreendemos um cenário e um contexto distantes do nosso espaço-tempo (histórias de um Brasil arcaico em seus usos e costumes), em O rio existe uma preocupação com um ambiente mais contemporâneo e, se o texto fosse mais objetivo, talvez fosse possível afirmar que não se tratava de um conto, mas sim de uma carta de despedida ou homenagem. Da mesma forma, em O encontro, lemos uma narradora atenta em não deixar escapar os detalhes ao mesmo tempo em que não dá espaço para a reprodução dos diálogos — e em dado momento, há uma menção a isso de forma enviesada: “os dois faziam um grande esforço para se tocar, estendendo as mãos, lutando em silêncio, como acontece nas comédias do cinema mudo”. Num conto sem diálogos, a alusão ao cinema mudo é singular para sugerir o estilo do texto.

Na seqüência de contos seguinte, Contracanto, o texto mais impactante, sem dúvida, é Caçadores, que facilmente pode ser tomado como bandeira pelos defensores de uma existência mais responsável na convivência com os animais. O narrador do texto apresenta o universo, a um só tempo, insensível e cruel dos caçadores e dos apreciadores da lagosta, iguaria dos sofisticados, como sugere o conto. Na literatura contemporânea, ao menos dois autores já dedicaram obras ao tema. J. M. Coetzee em A vida dos animais e Jonathan Safran Foer em Comer animais escreveram textos que, em alguma medida, podem ser confundidos com panfletos ideológicos. No caso de Vilma Arêas, o conto em questão poderia ser facilmente incluído como texto-chave de uma ONG que cuida dos direitos dos animais, a não ser pelo fato de a obra estar sob a chancela da “ficção”.

Adiante, da mesma maneira, o texto A dialética dos vampiros se encaixaria como excelente ensaio crítico sobre as atrações de TV e do cinema que têm explorado o vampiro como personagem de ficção. Ocorre que o narrador se aproveita desse gancho para discorrer sobre outro tema (a relação entre mãe e filho? Nossa tentativa frustrada de compreender tudo à luz dos pressupostos filosóficos de nossa e de outras épocas?). Nesse ponto, é singular a alusão a Wittgenstein: “é preciso entender ou morrer”, cita uma personagem, de forma categórica e fundamental. Já em No fundo do rubi, lê-se uma história cujo verdadeiro significado reside não no relacionamento improvável entre um homem de classe média e um mendigo, mas, sim, no anel de rubi de um personagem aparentemente secundário.

Universo particular
Ao operar no plano simbólico, com efeito, Vilma Arêas ensaia uma literatura que está mais próxima das ficções, na melhor companhia e tradição estabelecida pelo argentino Jorge Luis Borges. Em tempo: não se quer aqui dizer que a autora emula o estilo ou mimetiza o modelo narrativo do escritor argentino (até porque, se assim o fosse, a obra seria apenas uma paródia). O ponto-chave é que o livro de Arêas, de uma só vez, se descola do conto como gênero tradicional, migrando, aí sim, para aquela acepção concebida por Borges. Dessa maneira, para o bem e para o mal, temos um livro original, porque tira o leitor da zona de conforto, pregando peças e desafiando-o com armadilhas narrativas; de outro, exatamente porque esse leitor terá de ser mais experimentado a fim de que possa ingressar nesse universo particular concebido pela autora, ainda que ela não abuse de linguagem artificial — uma influência possível se se considerar a trajetória intelectual da autora.

E é, de fato, na linguagem ou no estilo do texto que se nota o limite alcançado pelo texto. Justifica-se: ainda que bem construídos, os contos carecem de uma prosa “menos elaborada” do ponto de vista da sua edificação. O argumento pode soar confuso, então, peço ao leitor, paciência para explicar com mais vagar e detalhe. O cerne da questão reside, por absurdo que pareça, na qualidade da sofisticação da prosa ficcional de Vilma Arêas. Assim, por dominar os códigos e os elementos centrais da narrativa, não chega a ser absurdo assinalar que seus textos contam com a organização conceitual necessária para que possa figurar nas diversas seletas contemporâneas. Não por acaso, conforme vemos ao final do livro, muitos desses contos contaram com primeira aparição em revistas como a Piauí ou coletâneas como a da Inimigo Rumor. De qualquer modo, para além da já citada carência de unidade — e, por conseguinte, continuidade — entre os contos, há que se mencionar a ausência de vivacidade nos textos (a não ser pela presença do simbólico), de maneira que muitos deles são fogo pálido, sem a dimensão literária necessária para se fazer verossímil ao universo do leitor (exceção deve ser feita ao conto Paixão de Lia, o melhor, sem dúvida, da seleção de Vento sul). E novamente caímos nas ficções.

Enquanto para muitos autores a companhia de Borges é uma saída compensatória para textos ruins, no caso de Vilma Arêas, trata-se de uma presença cômoda, mas que, a longo prazo, pode significar um modelo esgotado, uma rua sem saída. Ou, simplesmente, símbolos sem referências suficientes para que possa existir interlocução com os leitores.

LEIA ENTREVISTA COM A AUTORA.

Vento sul
Vilma Arêas
Companhia das Letras
112 págs.
Vilma Arêas
É titular de literatura pela Unicamp. Na ficção, estreou com Partidas (1976). Publicou, ainda, Aos trancos e relâmpagos e A terceira perna, ambos premiados com o Jabuti. Como ensaísta, é autora de Clarice Lispector com a ponta dos dedos, livro de 2005, que recebeu o prêmio APCA na categoria literatura.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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