Mal chegamos ao mundo e somos confrontados com uma série de enigmas, dúvidas, tribulações, quem somos, para onde vamos, de onde viemos. E com o passar do tempo vamos percebendo que a seara dos mistérios insondáveis só tende a aumentar, como escrever um best-seller, como investir na bolsa de valores, o que fazer para o jantar? Entre tantas incertezas, há uma que nos assalta assim que aprendemos as primeiras letras. Numa sala de aula, nós, que nada sabemos do mundo, somos chamados diante do professor, que após nos apresentar algum texto inescrutável, propõe a seguinte questão: fulaninho, você que leu o romance ou o conto ou a crônica, explique para os seus colegas o que quis dizer o autor. E ficamos assim, infinitamente pequenos diante do mistério insolúvel daquelas palavras. E remoemos a tal pergunta nesses poucos instantes até que o professor perca a paciência e nos condene ao inferno dos reprovados, ou numa hipótese mais feliz, sejamos capazes de distraí-lo com argumentos obscuros e outras suposições. Mas, afinal, o que quis dizer o autor? E de forma mais específica, que mistérios nos esconde o autor de Lucíola, ou de O guarani? Ou mais clássico e assustador ainda, que mistérios nos esconde Machado de Assis?
Há três formas básicas de lidar com o enigma. Hipótese um, o enigma não nos interessa e tentamos adivinhar qual é a resposta que o professor espera para, assim, tirarmos uma boa nota e passarmos logo de ano e mais tarde conseguirmos um bom emprego e nunca mais termos que nos preocupar com tais bobagens. Hipótese dois, ficamos obcecados com o mistério, decidimos que não descansaremos enquanto não ouvirmos a verdade do próprio autor. No caso de ele estar vivo, ótimo, lhe enviamos um e-mail, uma mensagem no facebook, ou o perseguimos pelas ruas do seu bairro até que ele concorde em revelar afinal, que diabos ele quis dizer naquele maldito livro. No caso do autor estar morto, questão um pouco mais problemática, mas nem por isso insolúvel, procuramos um centro espírita e pedimos ao médium que chame o autor para uma breve entrevista post-mortem. E, a terceira possibilidade, decidimos que o autor não tem nada a ver com isso, que o que importa é o que está escrito, e inventamos as mais complexas teorias literárias para que o texto se molde às nossas idéias.
Cada uma das hipóteses acima tem prós e contras bastante óbvios, mas talvez valha a pena deter-se um pouco mais na segunda possibilidade. Ficamos obcecados e decidimos ouvir a resposta da boca do próprio autor, por exemplo, Machado de Assis. Imaginemos que por um desses acasos da vida, conseguimos nos comunicar com o espírito de Machado de Assis, ele (através do médium) é muito simpático e solícito e se dispõe a responder qualquer pergunta. Nós, um pouco nervosos, afinal, trata-se de ninguém mais ninguém menos que o grande autor da literatura brasileira em espírito e ectoplasma, pensamos cuidadosamente no que perguntar, até que chegamos a uma questão que sempre nos intrigou, não que sejamos dados a intrigas, fofocas, trata-se de um interesse puramente literário, mas, afinal, caríssimo Machado, Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Nesse momento, ele nos olha circunspecto e talvez um pouco melancólico, talvez não seja aquela a primeira vez que evocam o seu espírito para responder tal pergunta, e diz, ah, meu filho, isso só perguntando para a própria Capitu. Nesse momento, nós, indignados, começamos a duvidar da veracidade daquela conversa, afinal, um grande escritor como ele jamais daria uma reposta revoltante como essa.
E mesmo que em nossa história, num desenrolar mais otimista, Machado de Assis tivesse dado uma resposta concreta ao nosso leitor, sim Capitu traiu, ou não, Capitu não traiu, o caso é que isso não daria ao livro uma leitura correta ou uma interpretação inquestionável. Seria apenas mais uma opinião, uma opinião importante, a do autor, mas não a única, nem a definitiva. Isso porque no processo da escrita, o escritor nunca tem controle total do resultado, há sempre algo que lhe escapa, algo que ele diz e não sabe que diz, algo que não depende dele, mas de quem lê. Por isso um livro pode ter inúmeras leituras, muitas até contraditórias, por isso um clássico é lido de formas diferentes dependendo da época, do idioma, da cultura. Por isso, no caso de um bom livro, a obra é sempre melhor do que o seu autor, que é cheio de defeitos e dúvidas e mesquinharias. Ou, como dizem, o poema sabe mais do que o poeta.
Voltando a Machado, há algo em seu texto que é indecifrável porque é do âmbito do enigma, do mistério, que escapa à própria vontade do autor, por mais racional e coerente que ele seja. Então, não é improvável que o próprio Machado não soubesse do segredo de Capitu, e que a personagem, que ele criou, seja um mistério para ele também. Ao leitor resta aceitar e conviver com tal enigma. Um leitor menos preocupado em obter respostas, verdades absolutas, e mais interessado em “reescrever” o texto. Nas palavras do próprio Bentinho, que fala em livros confusos e livros omissos: “Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nele”.
Uma das definições mais interessantes desse tipo de leitor foi dada por Macedonio Fernández, que criou a classificação (entre outras) do leitor salteado e leitor seguido. O leitor salteado seria aquele que tende a uma leitura fragmentada, que está disposto a preencher ele mesmo as lacunas deixadas pelo autor. Já o leitor seguido seria aquele que, no anseio de continuidade, espera do autor a divulgação de verdades absolutas, de uma solução para a história, para as questões propostas pelos personagens. Essa idéia foi adotada por Cortázar na construção de seus romances, principalmente em O jogo da amarelinha, que oferece duas formas básicas de leitura, uma leitura linear do capítulo 1 ao 56 e outra, fragmentada (salteada, no sentido macedoniano), que intercala uma série de outros capítulos, transformando, reescrevendo e recontextualizando o que havia sido dito antes. Cortázar, que também se preocupa em pensar uma teoria do leitor, é, porém, menos bem-sucedido que Macedonio, ao criar a pouco gloriosa classificação leitor fêmea (passivo) e leitor macho (ativo).
Seja como for, subjacente às classificações e demais teorias, predomina certa visão da literatura e de sua função. Diante da certeza de que não há verdades absolutas, de que o enigma não tem solução, já que nem a própria esfinge sabe a resposta, fica a possibilidade de um outro jogo, um jogo em que o leitor vai construindo significados na medida em que se aproxima da obra, um jogo que constrói o livro nas entrelinhas. Não mais uma leitura horizontal, linear, mas uma leitura vertical, na qual uma frase ou um parágrafo se abre, se transforma em novos significados a cada leitura, numa espécie de caleidoscópio, chegando ao ponto em que uma frase, sendo a mesma frase, é capaz de significar cada vez, a mesma e outra coisa. Porque há um mistério que continuamente nos escapa. Conviver com esse mistério e aceitá-lo é pôr em marcha essa máquina que chamamos literatura.
Voltando a Capitu, se soubéssemos a resposta (traiu ou não traiu), grande parte do fascínio da obra se perderia. Pois o seu encanto, o encanto da personagem, reside (entre outras coisas) justamente aí, no que não somos capazes de esgotar. Mas e a questão da prova?, poderia questionar o nosso aluno diante da esfinge, afinal, respostas valem pontos, notas, empregos num futuro próximo ou distante. Bom, resta ao aluno respirar fundo e escrever o que lhe parecer mais verossímil, tendo como consolo a certeza de que até mesmo o próprio autor, se estivesse ali, correria o risco de ser reprovado.