José de Alencar se envolveu em diversas polêmicas literárias e políticas: entre 1850 e 1870, as três décadas de sua atividade intelectual, seu nome esteve confrontado com grandes vultos contemporâneos: Gonçalves de Magalhães, D. Pedro II, Franklin Távora, Joaquim Nabuco e outros. As contendas incidiam nas questões mais urgentes da época: a Abolição, a identidade nacional, a representação literária do índio e dos tipos regionais, a constituição da língua brasileira, etc. Na maioria dos casos, Alencar pouco traiu suas convicções: foi quase sempre conservador e romântico.
Para deflagrar o debate, um gênero a que o escritor assiduamente recorreu foi a carta aberta, que, sem a pesada retórica dos tratados e artigos, tinha na linguagem distensa um atrativo para convencer os leitores a entrar na arena. Embora publicadas em jornal, as missivas preservavam uma atmosfera íntima, simulando diálogo particular entre o escritor e o destinatário. Com isso, a persuasão fazia-se muito mais pela sedução gradual do leitor do que pelo arrebanhamento agressivo, típico de outro gênero muito comum no século 19, o libelo. Em geral, as correspondências eram subscritas por pseudônimos, o que, em certa medida, apimentava os embates, pois a estratégia como que permitia ao mascarado agir mais livremente, despojado de sua persona oficial. Já que o nome falso costumava reaproveitar algum outro da tradição ocidental (Erasmo, Cincinato, Temprônio), a intertextualidade adiantava ao público alguns posicionamentos do missivista.
O primeiro pseudônimo famoso de Alencar foi Ig, utilizado em 1856 para encetar críticas ao livro A confederação dos tamoios, de Gonçalves de Magalhães, publicado no mesmo ano. O cearense iniciante protegeu sua identidade num nome enigmático, para assim enfrentar o poeta querido do Imperador. Não por acaso, D. Pedro, também travestido, saiu em resposta ao desaforado Ig, que condenava em Gonçalves a incompatibilidade da linguagem épica — áspera e lusitana — com a pureza e a bravura selvagem do índio, então considerado cerne de nossa incipiente nacionalidade, e a ausência de cor local no livro. Aqui, temos um Alencar jovem, fervoroso, animado com a manutenção do debate, a tal ponto que, no ano seguinte, ele publicou O guarani, romance de grande sucesso em que demonstrava como efetivar aquilo que ele defendera ardentemente.
Tendo publicado outros títulos importantes — As minas de prata (1862-6), Lucíola (1862), Diva (1864) e Iracema (1865) — e crescentemente consagrado, o missivista Alencar do final da década de 60 é bem distinto de Ig, a começar pelo novo pseudônimo, Erasmo, e pelos destinatários das correspondências, o Imperador, o visconde de Itaboraí, o marquês de Olinda, enfim, o alto escalão do Império. De argumentação sólida, as Cartas de Erasmo reclamam atitude enérgica de D. Pedro para tirar o Brasil da crise política, econômica e social, agravada pela guerra do Paraguai (1865).
Em 1870, José de Alencar, quarentão, passou a assinar alguns livros com o pseudônimo Sênio, sugerindo o decréscimo do fervor juvenil. O autor julgava-se um “anacronismo literário”. Nesse período, o entusiasmo do polemista esmorece em favor do romancista, que confabula quase uma dezena de livros, da mais variada fatura, numa média superior à de um livro por ano. Surgem romances regionalistas (O gaúcho, Til, O sertanejo), históricos (Alfarrábios, A guerra dos mascates), indianistas (Ubirajara) e urbanos (A pata da gazela, Sonhos d’ouro, Senhora). É nessa década ambígua, com Alencar em produção intensa e em crescente recolhimento, que aparecem as Cartas a Cincinato no periódico Questões do Dia, entre 14 de setembro de 1871 e 22 de fevereiro de 1872. Desta vez, no entanto, o cearense é destinatário das missivas escritas por Franklin Távora.
Contra Alencar
Em que consistem tais correspondências? Na conversa de Semprônio com o amigo Cincinato. O assunto? Sênio, “inimigo” comum de ambos. Como se sabe, em 1870, Alencar foi preterido do Senado, o que, aliado à sua oposição à Lei do Ventre Livre, alimentou dissensão entre o romancista e o imperador D. Pedro II. Em 1871, o escritor português José Feliciano de Castilho, radicado no Rio de Janeiro e amigo do monarca, fundou o jornal Questões do Dia, onde criticou os posicionamentos de José de Alencar. Subscrevendo-se Lúcio Quinto Cincinato, Feliciano transferiu para si a abnegação e a coragem com que normalmente se caracterizam o ditador romano. No mesmo ano e no mesmo jornal, Franklin Távora, igualmente aureolado por codinome clássico, Semprônio, publica algumas cartas a Cincinato, engrossando coro contra Alencar. Desse modo, Franklin dirige-se a um José, lusitano, para falar de/com outro cearense.
A indisposição de Semprônio para com Sênio tem motivações ideológicas e literárias, conforme veremos adiante. Entretanto, a rixa entre Franklin e Alencar teria surgido do silêncio deste em relação ao romance Os índios do Jaguaribe, que Távora remetera à apreciação do conterrâneo. O ano de 1871 favoreceu à expurgação do ressentimento de Távora: no ano anterior, Alencar sofrera restrições no Senado, lançara O gaúcho, reeditara Iracema e recebera críticas de Feliciano. Com o nome em alta na cena literária, todo comentário sobre o escritor ganharia visibilidade. Para o bem e para o mal. O oportunismo de Franklin fica patente no fato de Semprônio restringir-se justamente aos dois romances alencarianos então em voga.
Avaliando taxativamente a obra de Alencar, as Cartas a Cincinato costumam ser lembradas como indício da agonia romântica e da ascensão realista-naturalista. Com efeito, há diversas marcas dessa transição estética (também observada por Machado de Assis na poesia da “nova geração” da década de 1870), sobretudo na censura à imaginação desenfreada de Sênio. Por outro lado, não se pode esquecer que, sob a condenação ao romantismo, está a indignação contra o patriarca da escola, por quem Távora certamente nutria admiração e respeito, pois, caso contrário, não se importaria com a indiferença de Alencar. Misto de admiração e de vingança, a reação antirromântica é também um acerto de contas, que se esforça por rechaçar tudo aquilo que se associe ao oponente. Entretanto, tal empenho não impede que apareçam aqui e ali afinidades entre Semprônio e Sênio.
Em última análise, Franklin critica o exagero imaginativo de Alencar, que, deturpando a realidade empírica, cria inverossimilhanças. A missão de copiar (Távora fala em daguerreotipar) fielmente a realidade exigiria do escritor a observação atenta do mundo, devendo a criação literária realizar-se praticamente in loco: “Por que não foi ao Rio Grande do Sul, antes de haver escrito o Gaúcho?”. Sem dúvida, os posicionamentos favoráveis à arte mimética acusam inclinação aos preceitos naturalistas de Zola, mas, ao contrário do romancista francês, Semprônio não prescinde da beleza: se o autor de Germinal preferia ambientes lúgubres, onde pudesse fotografar as patologias sociais, Franklin afirma que “o artista não tem o direito de perder de vista o belo ou o ideal, posto que combinando-o sempre com a natureza”. Portanto, a fatia tavoriana é muito mais seleta do que a zolista, embora ambos sejam obsessivas por objetividade. O belo artístico não exclui, no caso de Semprônio, o concurso da imaginação, que assume papel adornativo, não devendo ultrapassar ou deformar o que foi apreendido pela observação: “A natureza oferece cada dia um encanto novo, que a imaginação sadia recolhe para dar-lhe mil feições graciosas, ainda não conhecidas. O fluido propriamente original e imaginoso é apenas aplicado a dar o tom, o equilíbrio, o reflexo estético às criações reais”. Desse modo, a obra de arte deveria ser verossímil, mas não necessariamente verdadeira: “Em uma palavra prefiro o romance verossímil, possível, quero ‘o homem junto das coisas’, definição da arte por Bacon”.
Livro de gabinete
Tal preocupação leva Távora a destronar O gaúcho da categoria de romance histórico, já que, ao contrário de Cooper, por exemplo, Alencar não teria consultado fontes historiográficas, tampouco estudado a história do Rio Grande do Sul, produzindo um livro de gabinete. Como se vê, o romance histórico pressuporia obediência aos fatos, cabendo ao artista selecionar aqueles que lhe permitissem obter melhor efeito estético, sem que as escolhas deformassem o passado. A ênfase do processo criativo recai, portanto, na matéria da obra, e não no criador, o que obviamente não significa a exclusão deste. Por isso, Franklin Távora altera o conceito de gênio: enquanto no romantismo o termo aludia à inspiração privilegiada do artista (Castro Alves dizia “Eu sinto em mim o borbulhar do gênio”), nas Cartas, ele nasce da observação da natureza, portanto de uma instância externa ao criador: “Logo, a natureza em primeiro lugar, e depois, complexa e completa observação — eis os dois elementos, as duas possantes asas do gênio”. Essa desauratização visa também a combater o “fetichismo literário”, que supervaloriza alguns autores em detrimento de muitos outros. Na condenação do gênio goteja o amargor do iniciante mal aquinhoado, que, por exemplo, censura a atuação polígrafa de Alencar: “Os graves encargos de conselheiro de Estado, de político, de advogado, de parlamentar, de oposicionista, e de muitas coisas mais, não permitem aos talentos literários produzir senão abortos, se querem dar crianças em menos de nove meses”.
A valorização do romance histórico denuncia o apego de Franklin Távora à tradição romântica, também interessada em rastrear origens históricas e/ou lendárias dos diferentes povos e nações. Tal hipótese confirma-se na carta VIII da primeira série: “Parecendo-me, porém, que o romance tem influência civilizadora; que moraliza, educa, forma o sentimento pelas lições e pelas advertências; que até certo ponto acompanha o teatro em suas vistas de conquista do ideal social — prefiro o romance íntimo, histórico, de costumes, e até o realista, ainda que este me não pareça característico dos tempos que correm”. A mesma função reparadora é atribuída à crítica: “A crítica, que se preza de justa e independente, é inquestionável agente do progresso; põe diques (deixem lá falar) aos extravasamentos das imaginações suberabundantes, alimenta e aguça os estímulos produtivos, apura o licor das boas fontes sem estancá-las”.
Imbuído dessa causa, Távora condena a “neologismomania” alencariana, alegando que a criação abusiva de palavras novas, além de desnecessária, comprometeria a pureza lexical do idioma. É a esse ponto, dentre outros, que Sênio responde em Bênção paterna, antológico prefácio a Sonhos d’ouro (1872), recorrendo ironicamente ao argumento de autoridade:
Estando provado pelas mais sábias e profundas investigações começadas por Jacob Grimm, e ultimamente desenvolvidas por Max Müller, a respeito da apofonia, que a transformação mecânica das línguas se opera pela modificação dos órgãos da fala, pergunto eu, e não se riam, que é mui séria a questão:
O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?
Se as Cartas a Cincinato pecam por cobrar de Sênio aquilo que ele não prometera (rigor na observação, principalmente), por outro, são meritórias em delatar exageros do nosso romantismo brasileiro (conferir trecho transcrito nesta página). Por isso, é muito louvável a iniciativa da Editora Unicamp em repor em circulação a obra, rompendo os 140 anos que nos separavam da única e rara edição de 1871. Assim como as Cartas sertanejas de Júlio Ribeiro, as de Cincinato inspiram o marasmo contemporâneo ao debate literário, de que Alencar ainda daria mostras de vigor em 1875, dois anos antes de sua morte, nas páginas de O Globo, quando polemizou com Joaquim Nabuco sobre as incoerências que o pernambucano detectara em sua obra.