Publicado em 1899, Jana e Joel, de Xavier Marques, recebeu os rótulos que parcela significativa da nossa crítica, em seu afã classificador, costuma pespegar: parnasiano, neoparnasiano, impressionista, prosa de arte, regionalista do Norte, pré-modernista, etc. Há, sem dúvida, algo de delirante nesse zelo que pretende dividir, em conjuntos nítidos, uma produção literária caracterizada, principalmente, por diluir os cânones, atenuação que alguns utopistas preferem chamar de antropofagia — e que, convenhamos, a maior parte das vezes satisfaz-se em produzir simplórias eructações. De qualquer forma, a dificuldade de classificação, confirmada no único exame minucioso que a obra desse autodidata baiano mereceu — O ficcionista Xavier Marques: um estudo da “transição” ornamental, de David Salles —, só enaltece o escritor combatido pelos modernistas, condenado ao esquecimento, injustamente, pela acrimônia festiva que, até hoje, polui certas panelinhas literárias.
Não discutirei as conclusões de Salles, mas algumas, reproduzidas, aqui e ali, como validações da crítica modernista, produzem efeito contrário ao desejado e comprovam a razoável qualidade de Xavier Marques. De acordo com Salles, “imanentemente antagônico às formas vanguardistas ou renovadoras que surgiam no Brasil”, o autor de Jana e Joel escrevia segundo um “processo eufêmico da linguagem”, criando uma “elevação narrativa” que “retira do texto todas as cruezas realistas”, e possuía uma “visão idealizada do mundo […], decorrente não de valores idealistas em si mesmos […], mas da compostura ou mascaramento ético e do recato moral idealizadamente selecionadores do que é ou não parte do mundo civilizado”.
Estas e outras características são tratadas como exemplos de equívoco; no entanto, tal estudo, publicado em 1977, deve ser relido sob nova perspectiva, pois, distantes da Semana de 22, de suas consequências imediatas e do nascedouro das correntes críticas cujos discípulos, ainda hoje, insistem em supervalorizar a literatura que dali emergiu, podemos perceber a barafunda à qual chegamos: salvo exceções, a produção literária nacional chafurda numa sintaxe que instituiu o laconismo, a monotonia e a obscuridade como regras; no apego à linguagem obscena, aos chavões e aos solecismos; na predominância entediante da narrativa em primeira pessoa; e num relativismo que, ao advogar completa ausência de valores universais, inclusive éticos, só produz histórias repletas de mesmice e torpeza. Subliteratura, é claro, sempre houve e haverá, nascida ou não do pacto com o zeitgeist de diferentes épocas, mas a brasileira contemporânea tem seus vícios próprios: arrogante e narcisista, acredita-se genial e, pior, imprescindível. Amolda-se, portanto, à irônica definição de Nicolás Gómez Dávila: “La sub-literatura es el conjunto de libros estimables que cada nueva generación lee con deleite, pero que nadie puede releer”.
Em meio a tal literatura, ler Xavier Marques, publicado meses depois de Pelo sertão, insignificante exercício beletrístico de Afonso Arinos, é um conforto de ordem moral. Longe de ser obra-prima, Jana e Joel revela, em seu perfil agradavelmente anacrônico, um dos caminhos possíveis à nossa literatura, projeto repudiado pelos modernistas mas ainda aberto à inventividade dos que se dispuserem a escrever boas histórias, sem a obrigação de fazer, a cada parágrafo, malabarismos verbais.
Trama e gênero fantástico
O enredo dessa novela — em que, no final, tudo acaba bem e o amor vence as dificuldades — é óbvio, linear a ponto de os acontecimentos inesperados não chegarem a desempenhar, em sua maioria, a função de verdadeiras peripécias. A espontaneidade, às vezes, abandona o texto, deixando-nos com um grupo de palavras eruditas que parece ganhar vida própria e saltar da página. Além disso, o leitor atento percebe, em determinados trechos, o exagero na adjetivação e o uso de uma retórica que, apesar de sóbria, salienta o anseio do autor por escrever como um literato.
Assim, no Capítulo I, o barco Tritão, centro da vida do pescador Anselmo e sustento de seus familiares — Teonila, a mãe idosa, Jana, a filha, e dois garotos gêmeos — e do órfão Joel, seu principal auxiliar, é descrito com insistência pegajosa: “barquinho bolineiro”, logo depois “mimoso”, “lindo”, “brinco das ondas e menina dos seus [de Anselmo] olhos”, transformando-se em “obra-prima, flor de fabulário”. A empolgação do narrador chega a criar, inclusive, um atraso no movimento de rotação da Terra: primeiro, “o sol estava posto e no céu limpo e azulado apenas se encastelava ao sul uma serrania de nuvens brancacentas com os epigões [sic] tintos de rosa e listrões cor de aço na base”; a seguir, transcorre tempo suficiente para que Anselmo chegue à sua casa, encontre a filha e a mãe no caminho, dialogue com a última, jante, espere a volta de Teonila — que fora à casa da “senhora da cidade”, candidata a ser madrinha de Jana —, espete o “palito servido na barba” e, descendo “o poial da casa para ir rever o barco”, encontre-o “embuçado”, é verdade, mas ainda sob o “crepúsculo cheio de reflexos de beira-mar”.
A novela também ensaia princípios de literatura fantástica que, infelizmente, não se concretizam. O cenário nuclear da narrativa, ilha em cujo litoral missionários teriam naufragado, “arremessados à costa e devorados pelos caboclos”, apresenta paisagem lunar,
com o estigma da esterilidade nos flancos vermelhos, sangrentos como as ancas de um animal escorchado. Apenas pelas abas da montanha desnuda, nas várzeas que a separam dos outros outeiros seus satélites, cresceram jamambás, aricuris e bosques de cajueiros, por serem, estes, plantas de resina, árvores que choram perenemente, pelos troncos e galhos, rios de pranto cor de âmbar.
O extraordinário se anuncia por meio do espectro de um dos frades, desenvolve-se graças a guinchos de coruja e uma risada sinistra que explode na noite, desembocando num “fragor líquido”, “eco envolvente” que lembra “uma horda de monstros a nado”:
O ronco vinha perto, retumbante, abalando os ares. Os cajueiros nas grotas já se arrepiavam bolindo [sic] com as ramas, à beira do poço os espinheiros e as palmas de alguns coqueiros bracejavam múrmuros, e até no alto da ermida o vento circulava, golfando como escapadas de foles. Joel e a companheira [Jana] muito conchegados não tiravam mais os olhos da curva imaginária que, admirados, traçavam à marcha daquele desconhecido…
É pena que, apesar de bem descrita, a cena não traga nenhuma conseqüência para a trama.
Epopéia e amor
Os esforços de Xavier Marques resultam, contudo, a maior parte das vezes, numa linguagem que, apesar do eruditismo, nos convence graças às seqüências épicas ou líricas bem construídas, ao cromatismo nem sempre exagerado e às cenas que, longe de somente instigar nossa fantasia, apelam à nossa imaginação, exigindo que reflitamos.
A velha Teonila surge de maneira iniludível no instantâneo que capta o “olhar buliçoso, […] a cabeça ruça e o rosto esfuracado e bruno como um bolo de algas”. Jana, a “selvagenzinha”, apesar dos “instintos insociáveis de tabaroa” e da aparência comum — “uma espécie de túnica inteiriça e curta lhe escorria do colo abaixo, acusando formas ainda mesquinhas; a cabeça era estreita e banal, com o cabelo em anéis, empeçado, até a nuca; só a fisionomia, de um tom de aquarela, diluída, brilhava, apesar disso, com a luz glauca de uns olhos esquisitos, de rara transparência […]” —, tem personalidade rebelde, passível de ser temporariamente domada, mas que, mortos o pai e a avó, foge da casa da madrinha na primeira oportunidade e abandona, em alto-mar, as vestimentas formais, obrigada a usar na cidade, trocando-as pelo antigo traje.
O desesperador Capítulo II, em que a tormenta destrói o Tritão, não cria apenas um contraponto tenebroso com a abertura da novela — desencadeando, a partir daí, mudanças que afetarão, direta ou indiretamente, a vida dos personagens —, mas, repleto da coragem infrutífera e comovente que tantas vezes engrandece os homens derrotados pela natureza, recorda-nos algumas páginas de Joseph Conrad.
Xavier Marques demonstra igual precisão nas cenas coletivas, como esta, em que a romaria chega à ilha — e o narrador nos oferece uma visão sucinta e completa:
Cerca de dez horas uma esquadrilha de canoas tocava os bicos no saibro das margens. Saveiros e lanchas fundeavam no poço, vindo alguns atracar às ruinas do cais. Os ilhéus, remando nos seus batelões, davam desembarque ao mulherio. Saltaram todos e foram subindo, levando à paz do sítio um grande rumor insólito, com harmonias díspares, briga de sanfonas e trompas, risadas e cantigas, flamâncias de xales e saias, frêmitos multicores de bandeiras e o pendão branco de Nossa Senhora.
E ainda que possamos ressaltar, mais uma vez, o eruditismo da imagem, há rara perfeição no desvio metafórico, tão sugestivo, que compara as almas dos pescadores às velas das embarcações:
[…] Os pescadores, humilhados, com as mãos nos peitos e os joelhos em terra, ouviam expirar as orações que subiam pelo trono da Virgem, na intenção deles, e por sua vez, embevecidos na irradiação da divina Estrela do Mar, sua Mãe e Senhora, largavam as almas enfunadas pelo sopro dos rogos, como sabiam fazer às velas brancas que o bafejo do céu conduzia a porto seguro.
No Capítulo V, o narrador transforma a rivalidade pueril entre marinheiros — a “batalha das regatas”, da qual Joel sai vencedor — num evento epopéico. Somos convencidos de que estamos no momento crucial de uma odisséia:
Por vezes, à passagem das refregas, o equilíbrio ameaçava romper-se, a canoa empinava, deitava-se, e as costas de Joel iam roçando a espuma das ondas fendidas meio a meio. Nada o intimidava, porém; nem a cena trágica, que num desses momentos lhe acudiu ao espírito: a embarcação virada, e Jana perdida, afogada, no meio do canal… E para que isto não sucedesse ele esticava mais as cordas e deixava-se levar, ressupino sobre as ondas, lavado por elas, que lhe cavalgavam o peito.
[…]
Mas aí acabou a sua fantasia. Não pôde mais pensar em nada. As seis canoas que se apostavam, ele as via surradas [grifo do autor] de uma vez. Os canoeiros se avisavam disto, porque faziam manobras diversas, punham mais homens nos brandais, olhavam para trás, receosos, desconfiados.
— São horas! — bradou Joel.
Jana, fora de si, ergueu-se do banco, de braços abertos. O mestre já não sorria. O vento chavascou de rijo a vela.
Subitamente um formidável brado suplantou o barulho das ondas. Rápida como um agulhão, a canoa de Joel foi passando a barlavento de todas, uma por uma, entre surriadas e aclamações. Jana, com o cabelo eriçado, suspensa, estendeu os braços para o amigo.
Esse mesmo Joel heróico verá, no Capítulo XI, Jana partir, sob as ordens do pai e da avó, à casa da madrinha. E após minutos que se estendem numa lenta agonia, da qual ele, agora impotente, é obrigado a participar como carregador, resta-lhe a canção de lamento que a cadência de seu remo compõe:
A embarcação feriu a praia como um dardo. Os fardos restantes foram embarcados à pressa; e o remo do galé recomeçou a cantar, dentro d’água verde, clara de sol, uma elegia dolente e monótona que a [Jana] fazia chorar.
Música que se transformará radicalmente no reencontro de Jana e na fuga de ambos à ilha:
Diligente, jubiloso, pegou de remar para fora. E o seu remo cantava n’água sombria um estribilho alegre, de ritmo brilhante, como um hino triunfal.
Psicologia e sensualidade
De volta à condição de herói, renasce o Joel romântico, casto, puro, cuja psicologia o narrador nos expusera, no Capítulo IX, de maneira admirável:
— Ela acordou — murmurou Jana, explicando a demora e conchegando-se na sombra, enquanto as mãos do amigo lhe tateavam os ombros e em seguida o peito, inquirindo se o coração dela batia. E como achava um prazer infantil em sopesá-la, em experimentar as forças, carregando esse fardo vivo que lhe causava, com a sensação de peso suave, uma embriaguez de amor-próprio, Joel fez como de outras vezes, — ergueu-a pela cintura e foi pousá-la nas pedras, ao pé da ladeira por onde se chegava à ermida.
Xavier Marques jamais abdica de mostrar a tensão sensual que permeia os encontros desses jovens, mas não hesita em definir a amizade que se transforma em amor como uma relação “onde nunca entrara o pudor, porque não tinha malícia”. E ainda que Jana e Joel debatam-se numa sensualidade sempre a um passo de explodir, no penúltimo capítulo, quando copulam, o narrador nos presenteia com sua descrição oblíqua, metafórica, que dispensa os termos chulos ou crus:
Vinha espertando um vento brisa que fazia a canoa oscilar, como um berço, ao ritmo das pequenas ondas que lhe borrifavam os bordos. Pouco a pouco esse embalo foi-se alargando, nas pedras da restinga começaram a estalar os beijos da quebrança, um murmulhar confuso, misto de sonoridades líquidas e aéreas, cercava o batel esguio e como que abandonado no fundeadouro, ao jogo das águas revessas.
Talvez, soavam muito embaixo, no cristal do leito marinho, aquelas harpas tinintes, vozes do peixe músico, vibração das estrelas ou ilusão dos sentidos… Soavam, de certo; no mar, no firmamento, na alma, fosse onde fosse, elas retiniam, multiplicando círculos sonoros pelo espaço e pela noite, até que um rumor soberano, cheio de palpitações, as foi abafando e amortecendo numa surdina cada vez mais imperceptível. O mar, em ânsias, ia trocando seus acentos cariciosos e finos por uma espécie de rugido animal, uma trepidação tempestuosa em que nada se distinguia e tudo, ao redor, se confundia…
No último capítulo, Jana e Joel desembarcam na ilha tarde da noite, agora definitivamente unidos. Em meio ao silêncio, à ausência do mal e à tristeza por recordar os mortos, nada se antepõe à felicidade desse casal adâmico que, por um momento, nos dá a impressão de retornar ao Paraíso.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Graça Aranha e Canaã.