🔓 Um poeta militante pós-revolucionário

Carlos Ferreira não é um poeta militante típico do período de luta pela independência de Angola, assumindo esse legado de uma maneira crítica
O poeta Carlos Ferreira, autor de “meaidade”
08/08/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

Só agora me chegou às mãos o livro de poesia meaidade, do angolano Carlos Ferreira, editado no final de 2021 em Angola e Portugal pela Guerra e Paz. O autor, atual adido de imprensa e de cultura de Angola em Paris, é um conhecido jornalista, poeta, antologiador, letrista e ativista cultural. As suas ligações ao movimento musical do país são muito importantes: além de ter participado na génese da kizomba, ritmo local que, tendo ido beber na fonte da música antilhana, sobretudo do emblemático grupo Kassav, se globalizou autenticamente, sendo hoje escutado, tocado e dançado um pouco por todo o mundo, é também o autor de algumas das mais belas letras da atual música popular angolana, conhecidas do público nas vozes de grandes intérpretes tais como Paulo Flores, André Mingas e Filipe Mukenga.

Carlos Ferreira faz parte da geração de escritores angolanos nascidos na década de 50 e que, em geral, começaram a publicar após a independência do país, sobretudo a partir do início dos anos 80. É a mesma geração de Ana Paula Tavares, João Maimona, José Luís Mendonça, Amélia Dalomba, Alexandra Dáskalos, Ana Branco, Ana de Santana, Lopito Feijó, Agualusa, Luís Kandjimbo e outros (eu faço igualmente parte dessa geração). Antes de meaidade, publicara 17 títulos, na maioria de poesia, distinguindo-se da maioria dos autores atrás citados não apenas pela postura crítica dos seus textos (o que é comum a alguns deles), mas sobretudo pela linguagem “direta, simples, de pretensão transparente e coloquial”, para recorrer às palavras do professor angolano Francisco Soares (dá aulas presentemente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul). De facto, explica Soares, “a poesia [angolana] dos anos 80 privilegiou o contrário: densidade metafórica, proliferação analógica, descontinuidades acentuadas no interior do discurso, até chegar ao extremo da suspensão do sentido como fio único de leitura do poema”.

As observações do professor Francisco Soares são rigorosamente formais. Na verdade, começo por assinalar que, no domínio dos conteúdos, Carlos Ferreira, tal como outros autores da mesma época, não deixa de ser herdeiro da tradição da literatura nacionalista e revolucionária (vamos dizer: engajada) das duas gerações anteriores responsáveis pela criação da literatura angolana moderna, a saber, a geração da Mensagem e a geração da Cultura, designações de duas importantes revistas culturais angolanas, em torno das quais se organizaram alguns dos principais autores do modernismo angolano. A título de exemplo, citem-se os nomes de Agostinho Neto, Aires de Almeida Santos, Viriato da Cruz, Maurício Gomes e Mário António de Oliveira, no primeiro caso, e os de Luandino Vieira, António Jacinto, Costa Andrade, Arnaldo Santos, os irmãos Henrique e Mário Guerra e João Abel, no segundo caso. Essa “herança”, entretanto — é imperioso afirmá-lo —, não implicava um mero mimetismo, isto é, não era uma simples cópia da literatura engajada e muitas vezes panfletária desses autores das gerações literárias anteriores, alguns dos quais, inclusive, se empenharam na luta armada pela independência de Angola.

É verdade que certos autores da Geração de 80 em cuja linhagem se insere Carlos Ferreira não sentem necessidade, para superarem a poética panfletária dos autores mais velhos, de fazer aquilo que Francisco Soares descreve como “a suspensão, desmultiplicação, ambiguação ou emascaramento do sentido” (como tão bem procedem, por exemplo, João Maimona ou José Luís Mendonça), mas isso não os impede de assumir o legado das gerações da Mensagem e da Cultura sob um deliberado e assumido olhar crítico. No caso concreto do autor de meaidade, a sua postura crítica assume, na maioria da sua obra, a forma de interpelação e até de invetiva, quando se trata de condenar as atuais traições aos compromissos revolucionários do passado, a que ele insiste em manter-se fiel.

Veja-se, por exemplo, esta interpelação aos mais velhos que foram capazes de fazer a luta pela independência do país, mas que, uma vez ela conquistada, não apenas se acomodaram, mas decidiram “engordar a bolsa vazia com que partiram um dia para a luta”, para citar o moçambicano Jorge Rebelo:

Onde estão agora?
Em que vala funda se esconderam
a vossa raiva
a vossa força
o sorriso terno e amargo
na manhã clara do vosso regresso?

(…)

Lembram-se,
era para sermos iguais
igual a água
a fome dividida.

(…)

Que é das palavras dos gestos do punho?
Oferta amiga nos longos anos
abrindo caminhos
emprenhando ventres de esperança
ou apenas um disfarce
jornada ténue
a nossa vida acabada em vosso proveito…

Carlos Ferreira não é, por conseguinte, um poeta militante típico do período de luta pela independência. Este último é assim caracterizado por Francisco Soares: “(…) devia ser revoltado e positivo, interpretando os episódios mais variados em função do mesmo combate certeiro pelo futuro”. O autor de meaidade, contudo, é um poeta lúcido, pois, mantendo-se fiel aos seus princípios morais e políticos revolucionários, não tem ilusões, parece não acreditar nos “amanhãs que cantam” e não hesita em denunciar todos aqueles que traíram os compromissos do passado. Nesse sentido, sofre do mesmo “mal estar epocal” de que sofrem igualmente os autores da mesma geração que, voluntariamente, não escolhem temáticas políticas ou, então, evitam usar a linguagem direta, simples, transparente e coloquial que o caracteriza, assim como a alguns outros autores do mesmo período. Talvez por essa razão, o poeta e crítico literário Luís Kandjimbo designa a geração de 80 de “Geração das Incertezas”.

A verdade, confirma o professor Francisco Soares, é que a referida geração, sendo embora heterodoxa (como acontece, afinal, em todo o mundo precisamente desde as duas últimas décadas do século passado), tem um outro ponto em comum, além do mal estar, por uma razão ou por outra, com o “socialismo” (as aspas são deliberadas): a temática amorosa. Assim, a mesma está espalhada pela obra de todos os autores da Geração de 80 ou Geração das Incertezas.

Não é mero acaso, por certo, que meaidade (livro escrito em jeito de balanço eminentemente político quando o autor atingiu 60 anos de idade) abra com um poema de amor:

Ficaria em ti, num amplexo
naquelas horas
tu me olhando
como quem faz de conta
Percorro-te assim
num bem-estar definitivo
andorinhas cintilando
nossa breve fuga passageira
arquivada para sempre
mesmo em memória fugaz.

De igual modo, o autor não tem medo do erotismo, outro veio importante da poesia angolana contemporânea:

Te ter
pétala
a
pétala

o corpo a face o gesto
tua esquadria em minhas mãos
língua de sol tocando teu peito.

Apesar de ser uma personalidade conhecida na cena cultural (e jornalística) de Angola, Carlos Ferreira ainda não tem a sua obra poética devidamente valorizada. Espera-se pela organização e rigorosa revisão dos seus poemas completos, para que o autor ocupe o lugar que merece na biblioteca da literatura angolana.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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