Existe o planeta e existe o edifício. E as nuvens cercando o edifício. As sedutoras nuvens. Não entendo por que sempre abrem as janelas e desligam o ar-condicionado. Não faz sentido. Janelas abertas são muito perigosas. Eu sempre fecho as vinte janelas e ligo o ar-condicionado. Gosto de trabalhar em lugares seguros. Mas basta um minuto de desatenção e pronto, alguém vai lá e desfaz a arrumação. Simplesmente não dá pra entender.
As folhas escorregam pra fora da impressora, eu apanho o calhamaço, levo pra minha mesa, ajeito os óculos, empunho a caneta e começo a examinar uma por uma. Recebo em média mil páginas de dados, fórmulas, equações e algoritmos por dia. Minha função é assinalar o número cinco. Parece simples, mas estou no escritório há seis meses e até hoje não encontrei uma única ocorrência desse número. Meu antecessor sentou nesta mesma cadeira durante seis anos e não encontrou um único cinco. Somos vinte analistas nesta sala. Há vinte salas como esta neste andar. O edifício tem no total duzentos andares. Até hoje o número cinco não apareceu pra ninguém.
Mas não desanimamos. Nossa atividade é uma loteria. Não ter visto um único cinco não significa que a qualquer instante não verei vários. Talvez até mesmo cinco de uma vez. Isso pode acontecer amanhã. Quem sabe ainda hoje. Cinco números cinco em uma só folha é tudo o que precisamos, sinal de que os cálculos estão corretos. Indício de que a máquina do tempo está finalmente operante. Cinco números cinco é o que procuramos. É o que espera o supervisor do andar, ao visitar minha mesa. Pode ser hoje, pode ser amanhã. O supervisor do andar visita a mesa de cada analista três vezes por período.
Meu antecessor sofreu um colapso nervoso e teve que ser substituído às pressas. Fiquei sabendo que na mesma semana outros nove analistas sofreram uma crise parecida. Isso está ficando cada vez mais freqüente. Ontem mesmo meu vizinho de mesa atirou seu calhamaço para o alto e saltou pela quinta janela. Pobre coitado paranóico. Nos últimos meses ele me passou furtivamente dezenas de papeizinhos subversivos. Uma teoria demoníaca nasceu, cresceu e corroeu sua mente. Ele acreditava que o número cinco não existe. Nunca existiu. Ele tentou me convencer disso, mas eu simplesmente ignorei seus recadinhos anarquistas. Sentia pena do sujeito. Só não imaginava que além de concepções insanas o infeliz também alimentasse idéias suicidas. Não o denunciei ao supervisor do andar por compaixão. Ele seria preso, torturado e morto. Pensando bem, o resultado foi quase o mesmo: morte violenta. Mas sem prisão nem tortura. Foi melhor assim.
Ouço rumores de que a onda de surtos histéricos já chegou ao alto escalão. Prefiro não acreditar nisso. Nada de proveitoso costuma vir da boataria irresponsável. Dizem que vários superintendentes já foram parar no sanatório do primeiro andar, na ala dos casos gravíssimos. Depois foram os programadores e os engenheiros. Prefiro fingir que sou surdo, pegar meu calhamaço e enfiar o nariz no trabalho.
Agora há pouco houve uma agitação em nosso andar. O supervisor passou correndo na direção dos elevadores, seguido de vários analistas. Um alarme soou. Fomos ver o que estava acontecendo. Formou-se um grupo no corredor, ninguém sabia explicar nada, tinha gente dizendo que os cinco números cinco haviam aparecido. Confusão geral. Tentaram me arrastar para um elevador mas eu resisti, nadei contra o fluxo. Não gosto dessa euforia delirante. Voltei ao meu canto, fechei as vinte janelas, liguei o ar-condicionado e continuo trabalhando na sala vazia. Só vou parar quando o presidente do instituto anunciar que o trabalho foi concluído. Enquanto não ouvir uma declaração oficial, nada feito.
Outra teoria apocalíptica afirma que, de tanto perseguir o número cinco, ficamos todos cegos a ele. Os mais místicos garantem que o número cinco já apareceu mais de mil vezes só em nosso andar, mas ninguém enxergou. Nem vai enxergar. Jamais. Não costumo perder tempo com as bobagens que andam espalhando por aí, mas confesso que essa possibilidade começa a fazer sentido. Anteontem tive que ir ao quinto andar e fiquei perdido durante vinte minutos. Simplesmente não encontrava o bendito andar. Subi e desci a escada, subi e desci de elevador. Por mais que tentasse, passava do quarto andar para o sexto sem conseguir parar no quinto. Até que parei pra pedir ajuda e fui informado que eu já estava no andar certo. Mesmo assim eu não consegui encontrar nas paredes o número de acrílico vermelho, indicando o andar. Se ele estava mesmo lá eu não encontrei. Talvez tenha sido retirado pelo pessoal da manutenção pra ser consertado, essas peças de acrílico às vezes trincam.
Meia hora depois nada de anúncio oficial. A caraça do presidente não aparece na grande tela. Muito barulho por nada, como eu imaginava. Todos voltam devagar ao trabalho. Alguém abre as janelas e desliga o ar-condicionado, isso me irrita demais. Então recebo mais um bilhetinho subversivo. Não sei quem enviou, ele simplesmente foi jogado embaixo de meu nariz. A nova teoria afirma que a folha com os cinco números cinco foi encontrada. Porém a diretoria não quer que o mundo saiba que a máquina do tempo já está operante. Alguém aponta a quinta janela e grita, parece que outro analista acaba de pular. Outro bilhetinho é deixado em minha mesa. Não deu pra ver quem foi, eu estava olhando a janela. A novíssima teoria é mais bizarra do que as anteriores: ela afirma que os cinco números cinco foram encontrados e a máquina do tempo está operante, dois engenheiros e um piloto se apossaram dela e escaparam para o futuro, agora sempre que um analista encontra os cinco números cinco os pilantras voltam do futuro e assassinam o coitado. Querem ter certeza de que ninguém mais irá usufruir dessa tecnologia.
Em outro bilhetinho insólito, os dois engenheiros e o piloto não voltam do futuro. Não é necessário. Eles assassinam o analista de outra maneira. Eles disparam através do tempo uma idéia fixa que mergulha na mente do coitado. O desejo de saltar pela janela. Gente paranóica. Uma idéia fixa disparada do futuro?! Não tenho tempo pra tamanha bobagem. Mais folhas escorregam pra fora da impressora, eu apanho o calhamaço, levo pra minha mesa, ajeito os óculos, empunho a caneta e começo a examinar uma por uma. Tudo seria muito mais fácil se os idiotas parassem de despejar bilhetinhos em minha mesa cada vez que levanto ou olho a janela aberta, convidativa. As sedutoras nuvens.