Uma xícara de chá

Conto de Rafael Sperling
Ilustração: Theo Szczepanski
01/03/2012

Fui até o forno e coloquei água para esquentar. Me distraí e só voltei dois milhões de anos depois; a água ainda estava lá. Derramei a água numa xícara de chá e dentro dela pus 250.000 quilos de chá preto, pois gosto do meu chá bem forte. Coloquei numa bandeja o meu chá, um recipiente com o resto da água quente, os 100 quilos de chá preto em saquinho que havia sobrado e mais 350 xícaras, caso alguém quisesse tomar também. Caminhei 10.000 metros até a minha sala, onde minha esposa se encontrava. “Quer chá?”, eu berrei com toda a força em seu ouvido, “Oi?”, “Eu perguntei se você gostaria de tomar chá”, eu disse murmurando da outra ponta da sala, “Sim, eu quero”. Coloquei o chá em uma xícara; ela tomou e disse que era o pior chá do mundo, e por isso ligou para o exército russo ordenando que bombardeassem a minha cabeça, mas antes que ela terminasse a frase acertei uma voadora no cabo principal da companhia telefônica, deixando toda a cidade sem telefone. Alguém acabou vendo e começou a atirar em mim com uma bazuca, para se vingar. Saí correndo até o outro continente e me escondi num buraco com 500.000 quilômetros de profundidade. “Aqui ninguém vai me achar”, pensei assim que tranquei o portão de ferro com uma senha de 720 números e letras, mas assim que virei o rosto lá estava a minha esposa brandindo uma espada de aço em direção à minha cabeça. Por sorte, uma garça estava voando por ali no momento do golpe, fazendo minha esposa acertar o crânio da garça. Como o crânio era muito duro, a espada ricocheteou no crânio e começou a viajar em direção à cabeça de minha esposa. Antes que a espada a acertasse, o comandante do exército russo (que não compreendeu a mensagem de minha esposa, mas imaginou que estivesse em perigo) atirou uma bola de canhão na espada e a matou. Eu chorei e abracei minha esposa, dizendo que nunca mais faria o pior chá do mundo. Pegamos um teleférico e voltamos para casa. Após tomar um banho comecei a recitar de improviso para minha esposa um poema épico sobre uma grande batalha travada em nome de seu amor, contra todas as adversidades do universo. Quando terminei, ela já havia dormido, acordado, tomado banho, escrito um poema épico sobre um herói que não sabia fazer chá (e por isso afundou seu império), e ido trabalhar.

Rafael Sperling

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1985. É autor do livro de contos Festa na usina nuclear.

Rascunho