Amizade e mistério

"A porta", romance da húngara Magda Szabó, trata de uma relação entre mulheres de personalidades distintas e afetos intensos
Magda Szabó, autora de “A porta”
02/08/2022

A porta, da húngara Magda Szabó, mostra que o afeto e a amizade às vezes andam por caminhos espinhosos. Essa é a sensação que o romance causa sobre a relação entre as personagens principais — a narradora da história (uma escritora que depois sabemos se chamar também Magda) — e Emerenc, contratada para trabalhar em sua casa como empregada doméstica.

Foi uma amiga da escritora que indicou os serviços de Emerenc. Famosa no bairro, a mulher cuidava de outras casas, tirava neve da rua, gerenciava a vida doméstica das famílias. Logo no início, no entanto, percebemos que se trata de uma mulher insubordinável. Isso porque Emerenc deixa claro que é ela quem escolhe seus patrões, e não o contrário, pois dizia que não lavava roupa suja de “qualquer um”. A escritora e o marido passam pela seleção de Emerenc — que não se sabe exatamente que critérios tem —, e dali em diante são muitos anos de uma relação que reúne cuidado e agressividade quase na mesma proporção. As duas mulheres se tornam cada vez mais próximas, mas isso tem um custo alto para ambas e nos deixa na dúvida sobre quem está subordinada a quem.

As atitudes de Emerenc afrontam os patrões. Ela mesma decide em quais horários vai comparecer para trabalhar. Um dia, junta quinquilharias de decoração adquiridas de um bazar no bairro e as espalha em locais de sua própria preferência pelos cômodos da casa, gerando uma desavença de proporção quase difícil de assimilar, se a personagem não fosse tão bem construída. No final, eles cedem.

Além de dominar o lar em si, a força de influência de Emerenc se estende para o cachorro adotado pela família. O mascote Viola — nome escolhido pela funcionária — obedece muito mais a ela do que ao casal. Esse poder também exala um carisma que só deixa a personagem ainda mais envolvente.

Emerenc é mágica, atrai tudo que estiver ao seu redor para logo em seguida distribuir insultos àqueles que lhe demonstram afeto. No caso da escritora que a contratou, a agressão vem na forma de críticas à religiosidade, com um comentário ácido na ponta da língua cada vez que a mulher sai para ir à missa. Ou com desprezo pela sua profissão, já que Emerenc desvaloriza qualquer trabalho estritamente intelectual, acredita apenas no trabalho braçal, na força, na resistência física para as atividades cotidianas. Assim, escrever ou falar sobre literatura é perda de tempo para ela. Também não é possível esperar posicionamentos seus quanto à política. Os comentários vêm carregados de ressentimento, cortam logo o assunto — mais tarde entendemos a razão de tudo isso.

Essa senhora não apenas não tem consciência patriótica, ela não tem consciência nenhuma, seu espírito luminoso brilha forte, mas na neblina.

Essa forma extremamente cética de ver o mundo não impressionaria se a própria patroa não se ofendesse tanto. Por algum motivo, a escritora quer a aprovação de Emerenc, lê seus textos para ela, aguarda sempre um elogio, tenta entender como pode recusar a religiosidade, como pode estar alheia a discussões políticas num contexto como aquele. Esse confronto perpassa toda a história enquanto também se desenvolve uma dependência emocional entre ambas. É como se, ao mesmo tempo, Emerenc causasse estranhamento e encantamento.

Embora seja até invasiva no trato com o ambiente onde trabalha, no que diz respeito à própria casa, Emerenc se comporta de modo diferente. Ninguém tem permissão para entrar no seu espaço. Sabe-se que ela mantém gatos e talvez alguns artigos de família ou presentes. Mas ninguém pode passar da porta. Amigos e vizinhos, quando convidados, são recebidos no quintal. Seu passado é um quebra-cabeça que a patroa vai juntando aos poucos com ajuda da comunidade e de familiares de Emerenc, ou até em uma visita à cidade natal dela — um dos melhores trechos do romance.

Admiração e respeito
Mesmo com a rispidez com que trata até as pessoas que se aproximam para ajudá-la, Emerenc representa praticamente um mito nesse espaço que habita, tem a admiração, respeito e devoção de todos do bairro, é tratada quase como uma entidade superior. É que nesta mesma personalidade complexa, ela guarda generosidade e cuidado extremos com as pessoas de seu círculo pessoal.

Nas primeiras páginas, ficamos sabendo não apenas que Emerenc morreu, mas que Magda se sente responsável pela morte dela. Mais do que isso, ela faz uma confissão de culpa. Somente com o andamento da história é possível entender como essa morte se deu e o motivo de Magda se autorresponsabilizar. A revelação adiantada, no entanto, nada nos tira da curiosidade sobre o enredo nem prejudica o seu desenvolvimento. Na verdade, só causa ainda mais interesse. A aura fantástica de algumas passagens faz da leitura uma experiência marcante.

Aos poucos, Szabó nos entrega pistas das razões para que a funcionária seja tão fechada em seu próprio mundo, literal e metaforicamente. O espaço que Magda às vezes chama de “Cidade Proibida”. Parte delas está nos enormes traumas que acometem a mulher, envolvendo os impactos dos regimes políticos da Hungria, a perda violenta de familiares e o abandono. Vale mencionar que esse pequeno e restrito mundo de Emerenc começa a correr o risco de desmoronar quando ela confia à patroa seus segredos e a deixa entrar em sua casa.

O pano de fundo das consequências do pós-Segunda Guerra se mistura também com a história de Magda Szabó. Nascida ainda no período do Império Austro-Húngaro, na cidade de Debrecen, a autora viveu diferentes regimes políticos. Em 1949, ela teve um prêmio revogado pelo governo, que a considerava uma inimiga. Entre 1949 a 1956, período stalinista da Hungria, não teve permissão para publicar seus textos.

É importante falar sobre a trajetória de Magda na literatura porque a escrita e o meio literário também são como personagens do livro. De certa forma autobiográfico, A porta mostra um pouco como o processo artístico da patroa se relaciona com cada fase da amizade com a empregada. É interessante acompanhar, por exemplo, um momento em que a escritora se divide entre os preparativos para dar uma entrevista na TV sobre um prêmio recebido e, ao mesmo tempo, resolver um impasse decisivo na vida de Emerenc. Além disso, Magda deixa claro que são cuidados de Emerenc que permitem que ela tenha condições de se dedicar à escrita.

Responsável por projetar Magda Szabó internacionalmente, A porta foi publicado em 1987. Só ganhou uma edição em inglês em 2005, pelas mãos de Len Rix. O livro chega tardiamente ao Brasil em 2021, com tradução de Edith Elek. A tradutora, filha de húngaros que nasceu no Brasil, também é escritora. Por aqui, a leitura da obra tem sido estimulada com ajuda de clubes como o Leia Mulheres, uma importante via de entrada para obras clássicas e contemporâneas e para as produções de países que podem receber mais atenção do mercado editorial.

A porta
Magda Szabó
Trad.: Edith Elek
Intrínseca
256 págs.
Magda Szabó
Nasceu em uma família protestante em Debrecen (Hungria), em 1917. Estudou latim e húngaro e atuou como professora nas ocupações alemã e soviética no país nos anos 1940. Em 1947, publicou dois volumes de poesia pelos quais recebeu o prêmio Baumgartner, em 1949. Entre seus romances estão Freskó (1958) e Az oz (1959). A porta foi publicado em 1987. A versão para o cinema (Atrás da porta), de 2012, dirigida por István Szabó, tem a atriz Helen Mirren no papel de Emerenc. Sua obra está traduzida em mais de 30 idiomas e foi distinguida com inúmeros prêmios internacionais. A autora faleceu em 2007.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho