O valor de um coração puro

A narrativa cinematográfica de "Aldobrando" faz de um livro de quadrinhos uma experiência de leitura que se aproxima da arte do cinema
02/08/2022

Batizado pelos próprios autores como um “conto iniciático”, Aldobrando tem o roteiro de Gipi e o desenho de Critone, colorido por Claudia Palescandolo e Francesco Daniele. Essa nomeação faz muito sentido se pensarmos na condição de ignorância de vida do personagem que dá título à obra — um jovem sem malícia alguma e desprovido de grande inteligência (o carisma imediato me impede de chamá-lo de burro) — que o coloca absurdamente desprotegido diante dos homens mundanos. Mesmo sua característica mais nobre, a lealdade, é uma porta de entrada para humilhações. Até que, logo no início da aventura, o fiel Aldobrando, para salvar a vida de seu grande mestre, sai de casa com suas pernas de passarinho rumo à floresta em busca da “erva do lobo”. Esse ato primário é uma passagem de iniciação do personagem para a vida real.

À medida que avancei na leitura, tive a impressão de estar diante de uma tela de cinema, pois o modo de narrar se assemelha, a meu ver, ao de um filme. O enquadramento dos desenhos com closes silenciosos, sem balão de fala, intensifica a expressão dos personagens, assim como os takes panorâmicos revelam cenários que, mais do que situam o leitor, os colocam dentro da história. Esse enquadramento cinematográfico me remete à fala do cineasta alemão Wim Wenders, no documentário Janela da alma (2001), de Eduardo Coutinho. Ao responder a pergunta O que é mais importante no enquadramento?, o cineasta, após ajeitar os óculos que o faz ver o mundo através de um frame, diz:

O enquadramento é algo muito estranho porque o que está fora é quase mais importante do que o que está dentro. Costumamos olhar um enquadramento pelo que ele contém, num quadro, numa foto ou num filme. Normalmente, pensamos no que está no interior. Mas o verdadeiro ato de enquadrar consiste em excluir algo. Acho que o enquadramento se define muito mais pelo que não se mostra do que pelo que se mostra. Há uma escolha contínua quanto ao que será excluído. […] Portanto, o enquadramento tem total relação com o contar da história.

Muitas cores
Aldobrando parece ser um grande storyboard, com tomadas de cenas que não revelam tudo, personagens de costas, por exemplo, nos dão a oportunidade para imaginarmos as feições. A metonímia de alguns enquadramentos, somente a entrega de um objeto pelas mãos, a parte pelo todo, tenciona ainda mais a cena. Outro aspecto interessante é a vasta paleta de cor. Graficamente, elas anunciam, em muitas situações, uma mudança de cena, tal qual um corte de filmagem, potencializando-as. O livro começa com uma cena dramática em tons frios e, ao virar a página (o projeto gráfico claramente prevê o movimento do leitor nos segundos que se leva para o virar de uma página), nos deparamos com outra paleta de cor com tons quentes, alaranjados, num tempo progresso. O contraste de cores entre as cenas deixa o frio mais frio e o quente mais quente.

A percepção cinematográfica da obra não me parece simples coincidência. Gipi, um dos mais renomados cartunistas e ilustradores de todos os tempos, bebe dessa fonte. Depois de criar e dirigir vários curtas, ele lançou em 2011 seu primeiro longa-metragem, L’ultimo terrestre. Em 2018, dirigiu o filme Il ragazzo più felice del mondo. Os desenhos de Critone, também com vasta obra publicada, contribuem para trazer movimento e música à obra, elementos básicos do cinema. Com aguadas precisas, traços bastante expressivos e cheio de detalhes, ele constrói planos profundos na leitura das imagens.

O humor é algo que também salta aos olhos neste livro. Já dizia Freud: “o humor é o mais elevado grau de sofisticação do ser humano, a manifestação mais sofisticada do espírito humano”. O humor está presente tanto nos diálogos quanto na construção dos personagens, seja na morfologia, seja nas situações inusitadas — e apavorantes — que vivenciam. No encontro do nosso herói com um fugitivo de aparência duvidosa, que se esconde dentro de uma toca isolada da aldeia, temos o seguinte diálogo:

— Meu nome, escudeiro, é Sir. Gennaro Montecapoleone Delle Due Fontane. Filho de Brudagone Montecapoleone Delle Due Fontane, dito o “desposa moçoilas”. E você, plebeu, tem um cognome ou devo forjar-lhe um?

— Aldobrando, vossa senhoria.

— Então doravante você será Aldobrando das Tocas Alheias, escudeiro e aio de Sir. Gennaro Montecapoleone Delle Due Fontane, filho de Brudagone Montecapoleone Delle Due Fontane. O que acha?

— Só Aldobrando basta.

No entanto, é por meio do humor que se fala de coisa séria. A trama, como evidente crítica social, aborda os espectros de uma sociedade injusta, violenta, para não dizer doente. A corrupção, a traição, a ganância e o abuso do poder se instalam nos meandros das relações humanas. Um exemplo é o inescrupuloso rei, beberrão e altamente desagradável. Com um toque de criança mimada em sua aparência, ele personifica tudo o que há de pior no ser humano. A princesa, que, antes da morte da rainha, ocupava o lugar de enteada, passa a ser motivo de cobiça erótica deste repugnante rei.

Mas, sejamos justos, pois há que se falar do amor. “Às vezes, basta o valor de um coração puro para derrubar a tirania.” Dentre os desastres que se sobrepõem na trama, nasce também uma história romântica. Há espaço para reencontros e reconstruções de vida. Por último, deixo a frase contida no “Grande manual do feiticeiro”, como um enigma a ser revelado: “E ele trará consigo a recompensa por essa grande mudança”. Ao final, saboreamos uma sequência de imagens cinematográficas que dispensa palavras.

Aldobrando foi selecionado em 2021 pelo Grand Prix de la Critique e pelo Fauve d’Or no Festival de Angoulême. Agora editado pela Nemo, com tradução de Renata Silveira, é um deleite aos fãs de quadrinhos, de literatura e daqueles que simplesmente apreciam a arte.

Aldobrando
Critone & Gipi
Trad.: Renata Silveira
Nemo
208 págs.
Luigi Critone
Nascido em 1971, em Sant’Arcangelo (Itália), estudou arte em Roma. Em seguida, foi aluno da famosa Escola Internacional de Quadrinhos, em Florença. Com roteiro de Nicolas Jarry e France Richemond, desenhou livros da série La rose et la Croix, assinando dois volumes em 2005 e em 2006. Critone adaptou a biografia de Jean Teulé sobre o poeta François Villon: Je, François Villon. A série de três volumes, publicada entre 2011 e 2016, recebeu o prêmio Cases d’Histoire. Em parceira com Gipi, Critone desenhou Aldobrando, descrito pelos autores como um “conto iniciático”. Em 2021, o livro foi selecionado pelo Grand Prix de la Critique e pelo Fauve d’Or no Festival de Angoulême.
Raquel Matsushita

É escritora, ilustradora e designer gráfico. Autora do livro de contos Mínimo múltiplo comum, entre outros.

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