O incrível geneticista chinês

Trecho do romance inédito de Angela Dutra de Menezes
Ilustração: Robson Vilalba
01/03/2012

darling do planeta
A última descoberta científica por obra do acaso aconteceu quando o distraído cientista escocês Alexander Fleming saiu de férias, esquecendo abertas as janelas do laboratório. Ao voltar, ele encontrou as placas de cultura de Staphilococcus Aureus cobertas de mofo. Atento, o pesquisador notou que o bolor matara as bactérias. Assim nasceu a penicilina.

Discordo de quem acredita que a penicilina é “obra do acaso”. Se Fleming não fosse observador, jogaria as placas fora. Mas ele prestou atenção, ele viu. E salvou milhões de vidas. Exatamente como o doutor Yuan Wang, que, apesar de distraído, enxergava longe quando o assunto lhe interessava. Doutor Wang revirou o mundo de ponta à cabeça com sensacionais novidades. Enquanto realizava as pesquisas para a sua primeira descoberta mirabolante, que relatarei brevemente, ele observou comportamentos estranhos em algumas cobaias. Registrou a sua desconfiança em relação a elas, apelidou-as de ratinhos-xeretas, terminou a pesquisa que o obcecava e virou star. O darling do planeta. Durante longo tempo ocupou o posto de grande herói, o homem que levou felicidade a bilhões de infelizes excluídos.

Tão logo entendeu não existir novidades a acrescentar ao revolucionário estudo, ele convocou o professor-doutor Jing-Quo e ambos se trancaram nos laboratórios da Universidade da Califórnia. Ao saber que os dois pretendiam desvendar o segredo dos animaizinhos diferentes, entendi a minha vulnerabilidade. Poucas semanas antes, tranqüilamente, Yuan Wang me ofendera, acrescentando a meu nome o adjetivo “chato”. Resolvi não pagar para ver. Após receber a notícia, desfiz-me da minha casa, despedi-me dos filhos e dei no pé, convencido de que o doutor Wang viria atrás de mim. Ele era um gênio, eu não quis bancar o tolo. Não pretendia modificar-me. Gostava do meu jeito afável e comunicativo, de expressar pensamentos.

Explico melhor o meu pânico. Conheço bem Yuan Wang. Ele, pessoalmente, informou-me que Jing-Quo o ajudaria na pesquisa que tentaria decifrar a cadeia cromossômica dos ratinhos-xeretas. Pretendiam estudar-lhes o comportamento e, colhendo resultados positivos, aplicar o tratamento em humanos. Em última análise, os dois resolveram livrar a humanidade dos chatos. Não me refiro aos Pthirus pubis, parasitas que se instalam onde o nome indica, enlouquecendo os hospedeiros. O foco dos sábios era o chato Pessoa Física. Ou seja: abusados, sem limites, faladores, inconvenientes, exibidos, espalhafatosos, bonzinhos-crônicos, palpiteiros, caga-regras, hienas-gargalhantes, espaçosos, sabe-tudo, radicais político-religiosos, mentirosos patológicos, pretensiosos, vampiros emocionais, fofoqueiros, omissos, exibidos, profetas do apocalipse, rancorosos, egocêntricos, repetitivos, doutrinadores, etc., etc. e tal.

A lista poderia se alongar até onde desejássemos, citei os espécimes mais conhecidos, detesto inconveniências. Antes de iniciar os trabalhos, os cientistas Yuan Wang e Jing-Quo declararam à Imprensa que, para delimitar o imenso universo do estudo, eles determinaram que o vocábulo chato definia aqueles que, “com comportamentos invasivos e despidos de qualquer autocensura, levavam os semelhantes à loucura”. Na minha ignorância bio-filosófica, duvidei da correção da premissa. Talvez os chatos, inconscientemente, praticassem a chatice para testar o estoicismo alheio. Existiria neles a sincera tentativa de ajudar. Como sabemos, o sofrimento depura. Alimentei esperanças de que Yuan Wang comprovasse a minha teoria, concedendo aos inconvenientes a aura da santidade. Naqueles idos, eu ainda acreditava que a esperança morria por último…

A bem da verdade, considerei a investigação de Yuan Wang e Jing-Quo um imenso erro. Se os chatos desaparecessem, o dia-a-dia cairia na pasmaceira. Muita gente boa já afirmou que a dialética entre os chatos e os não chatos pavimenta o caminho da humanidade. Chatos instigaram a pensar, desenvolvem o altruísmo, estimulam a paciência, ensinam autocontrole (alheio, evidentemente, chato com pedigree desconhece o significado da palavra controle). Por último, mas igualmente importante: os chatos exercem o nobre trabalho da interação humana. Nas reuniões sociais, eles desfazem as rodinhas de conversas, obrigando os convidados a se reagruparem, estimulando a sociabilização. Resumindo: os chatos são o pêndulo do planeta. Através deles, os não chatos construíram maneiras civilizadas. Entre elas, a de não enfiar os dentes nas carótidas vizinhas por qualquer motivo fútil, primeiro e longínquo passo para o processo civilizatório, que desaguou na tecnologia cibernética. Tirar os chatos do caminho nos devolveria à barbárie. Não á toa, o grande Nietzsche — chatos adoram citações — afirmou que “(…) uma civilização superior só pode surgir onde haja duas castas diferentes (…)”. Claro, uso Nietzsche completamente fora de contexto, as duas castas apontadas são a do trabalho forçado e a do trabalho livre. Como quase ninguém sabe Filosofia, finjo que o alemão se referia aos chatos/não chatos. Ninguém me contestará e a minha pseudocultura se engrandecerá. Eventualmente, preocupo-me, comporto-me tal qual um chato. Perdão, leitores.

A realidade pura e simples é que cabeças científicas não decifram sutilezas. O doutor Yuan Wang jamais entendeu a importância dos chatos na organização social dos não chatos: aqueles quietinhos, que vão balindo, balindo, sem incomodar ninguém. O raciocínio é simples: através de suas certezas absolutas, os chatos incentivam as ovelhinhas a decodificar o conceito da des/obediência e do crescimento pessoal. Acho que compliquei o raciocínio, mudemos de assunto. O importante é que enviei dezenas de cartas ao doutor Yaun Wang apresentando o meu ponto de vista: chatos não deveriam desaparecer. Desconfio que Wang nem abriu os envelopes, nunca me escreveu uma linha. Concluí que, além de genial e pretensioso, ele esbanjava falta de educação. Afinal, as pessoas bem nascidas sabem que correspondências merecem resposta. Mesmo que protocolar. Nossa, o quanto fui arrogante, ignorante e tolo. Com um pouco de esforço, detectaria estranhezas. Tergiverso, outra vez. Vamos logo à história, que começa longe, muito longe. Exatamente na República Popular da China, há mais de quatro décadas.

Quase da minha idade, o doutor Yuan Wang, biólogo doutorado pela Universidade das Ilhas Maurício, Oceano Índico, vivia mediocremente. Tanto estudo, tanta esforço, tanta luta para, aos 30 anos, voltar à terra natal e empacar no cargo de assistente do assistente do catedrático de Biologia, em Pequim. Nem o consagrado título de PhD, conseguido a duras penas enquanto driblava, simultaneamente, as estruturas protéicas das membranas e as dificuldades lingüísticas — doutor Wang é autodidata em inglês — transformaram-no em merecedor de alto posto na principal Universidade chinesa. Para esquecer o cotidiano monótono de, todas as manhãs, bater ponto burocraticamente, como se não fosse um grande cientista, fluente em duas línguas, profundo conhecedor das cadeias de DNA, o doutor Wang decidiu pesquisar, em animais de laboratório, a participação da genética nas variações comportamentais humanas.

Tais pesquisas — pobre doutor Wang — transformaram-se na gota d’água de sua meteórica carreira acadêmica. Logo após publicar, numa revista científica internacional, um estudo provando por A + B que, quando uma superpopulação de camundongos é confinada em espaço restrito, o estresse dos cromossomos X e Y acentuam as práticas homossexuais masculinas e femininas, ele e os alegres ratinhos acabaram sumariamente despejados das instalações universitárias.

That scientific research sequer rendeu polêmica. Um doutorando norte-americano avisou que tal investigação, meio capenga, acontecera na década de 1960 e várias sumidades do Terceiro Mundo protestaram, defendendo as infelizes cobaias. Unanimemente, os professores da periferia, apoiados por algumas ONGs — transcorria a década de 1970, estréia das ONGs histéricas — afirmaram que, em vez de torturar os indefesos bichinhos, bastava ao doutor Wang observar as instituições penais dos países pobres onde, diuturnamente, cerca de 150 pessoas se amontoavam num espaço concebido para apenas 45. O resultado seria exatamente igual. Povo, ciência e polícia da banda podre da Terra conheciam, há tempos, a triste realidade que o Yuan Wang apregoara como grande novidade. Na época, recordo-me, senti-me realizado. As ONGs são, a princípio, a oficialização da chatice e, no affair Wang e seus ratinhos, elas não decepcionaram. Desempenharam brilhantemente o papel oportunista de defender o indefensável. No caso, as cobaias, em detrimento de seres humanos confinados em piores condições do que os ratos de laboratório. Reafirmo: chato de boa cepa, sólido, estruturado, não desconfia de nada, sempre se crê com a razão. Age igualzinho às antigas ONGs, patéticas em seus discursos em prol da aventurança dos minúsculos animaizinhos. Na cabeça delas, os prisioneiros humanos, criados à imagem e semelhança de Deus Pai, Nosso Senhor, valiam menos do que as cobaias. Mas não vou me alongar nesse assunto. Ao contrário das ONGs, desta e de outras eras, sou chato, mas não sou burro.

Angela Dutra de Menezes

Nasceu em 1946 no Rio de Janeiro (RJ). Formada em Comunicação Social pela UFRJ, estudou também na Universidade da República do Panamá e Universidade da Georgia (EUA). Estreou na literatura em 1995, com o romance Mil anos menos cinqüenta. É autora, entre outros, de O português que nos pariu e A tecelã de sonhos. O romance O incrível geneticista chinês será lançado em abril pela Record.

Rascunho