Um livro de horas, coletânea de poemas de Emily Dickinson, de seleção, tradução e ilustração de Angela-Lago, em edição bilíngüe, é um exemplo de obra disposta a trabalhar diferentes linguagens num exercício de criatividade e engenho. São 24 poemas escolhidos entre os 1.775 escritos que compõem a obra completa da autora, publicada postumamente por Thomas H. Johnson.
A proposta de Angela-Lago não está voltada propriamente para uma temática específica, mas se reporta a um gênero literário ligado a um contexto histórico e cultural já distante do nosso tempo. Situa-se, portanto, como um resgate e, ao mesmo tempo, uma atualização de forma e de conteúdo estéticos. Segundo Lúcia Castello Branco, “o chamado livro de horas, constituía um gênero medieval e continha orações e salmos para as diversas horas do dia. Em geral, vinha ornamentado por iluminuras, esses contornos de flores e volutas que, como bordados, circundavam os manuscritos”.
Este livro organizado por Angela-Lago se estrutura a partir de poemas e iluminuras, que, como bordados, contornam cada texto, não mais em manuscritos, mas já impresso em papel especial, com uma bela capa dura vermelha. Resgata a relação da poesia com a religiosidade, por um lado, na referência ao antigo livro medieval e, por outro, elabora-se uma composição, na qual a associação plástica de imagens de flores, paisagens e outros contornos integram o texto poético. De certa forma, isso não deixa de ser um homenagem à poeta que em sua produção cotidiana também utilizava desenhos, bordados e outros motivos plásticos para ilustrar poemas dedicados a amigos. A palavra, com seus ritmos, sons, sentidos e simbologias, conta também com as sugestões imagéticas bordadas e anexadas ao texto, costurando ou constituindo um tecido bem amplo.
Angela-Lago apresenta o livro referindo-se à prática de declamar poemas nas horas de aflição, como se fossem orações. Os poemas na versão original não possuem títulos, apenas numeração. A organização da tradutora atribui títulos a cada poema, relacionando-os a horas específicas sugeridas pelo eixo temático de cada um. Assim teremos entre outros títulos: Para a hora de esquecer, Para a hora sem luz, Para a hora do amor, Para a hora da paixão, Para a hora da alegria e assim por diante.
Reclusa e solitária
Com uma biografia simples, sem muitos detalhes e registros de vida pública, todas as apresentações da autora descrevem-na como solitária, reclusa em seu mundo familiar e de raro convívio social. Muito pouco de sua obra foi publicada em vida, e só ao final da década de 1920 é que passou a ser reconhecida pelo seu trabalho. A partir daí, “sua obra começou a adquirir verdadeira importância, só então entrando a agir como força transformadora da poesia mundial”. Segundo Mário Faustino, poeta, jornalista e crítico literário brasileiro, em sua coluna Poesia-experiência, do Suplemento do Jornal do Brasil, que circulava na década de 1950,
essa mulher ostenta uma sabedoria de percepção ontológica e de expressão verbal raríssima… A resistência constante à fria retórica e ao sentimentalismo falsamente ardente, a fidelidade aos elementos verdadeiramente poéticos das palavras e de suas relações, a dignidade dos fins, a honestidade dos métodos, o êxito absoluto do resultado: eis a lição inestimável dessa admirável recriadora da vida e pesquisadora da morte.
Ainda dentro dessa perspectiva, a publicação, ora analisada, permite-nos compreender essa sensibilidade artística como “um dos elos menos substituíveis da harmoniosa cadeira formada pela poesia de língua inglesa. Emily Dickinson é hoje a principal fonte próxima das correntes metafísicas e ‘pura’ dessa poesia em nosso tempo”.
A pureza e a harmonia de formas e sentidos resumem-se na simplicidade de uma vida e de uma escrita. Em Para a hora pequenina, o poema, como a rosa perdida no caminho, precisa de um eu lírico sensível que a ofereça a alguém, ou ao mundo. “Ninguém conheceria esta rosa pequenina,/ …/ Não fosse eu apanhá-la no caminho/ Para te oferecer”. É na simplicidade de elementos naturais e cotidianos que se opera a transcendência do ser, em sua condição humana e inabalavelmente frágil. Em Para a hora da dor, esses elementos concretos dialogam com abstrações e afetividades sem, contudo, abrirem mão da resistência constante à fria retórica e ao sentimentalismo falsamente ardente, qualidade dos escritos de Dickinson, ressaltada por Mário Faustino em sua leitura crítica. “Água, é a sede que ensina./ Terra, a travessia do mar. Êxtase, a agonia./ Paz, o guerrear./ Amor, o retrato eterno,/ Pássaros, inverno”. Neste poema, as palavras pairam como pássaros, num equilíbrio entre ar e penas, no qual tanto a fria retórica quanto os derramamentos sentimentalistas estão excluídos. O que funciona são construções de imagens que se transformam e permutam percepções sutis e significados múltiplos. São utilizados signos estritamente necessários e aglutinadores pela capacidade verbal de síntese de um sujeito lírico que se desdobra no dizer-se e ocultar-se permanente. Assim, muitas vezes, o poema parece dizer-se sozinho e torna-se tão claro, quanto a água, que ensina a sede. Outras vezes, a agonia desse dizer cobre de enigma o que se pretende oferecer ao outro, ao mundo. Em Para a hora do enigma, o que voa e o que fica se sustentam entre a clareza da forma e a imprecisão dos sentidos.
Algumas coisas que voam;
Pássaro, abelha, hora.
Não canto nenhuma agora.
Algumas coisas que ficam:
Dor, montanha, eternidade.
Não tenho necessidade.
Mas outras que ficam, voam.
Os céus eu posso explicar?
Imóvel — o enigma no ar!
Segundo Octavio Paz, em Signos em rotação, “a poesia é metamorfose, mudança, operação alquímica, e por isso é limítrofe da magia, da religião e de outras tentativas para transformar o homem e fazer deste ticas bordadas e anexadas ao texto, costurando ou constituindo um amplo tecido de sons, cores e significaçavam os manuscritos”ou daquele esse outro que é ele mesmo.”
A poesia de Dickinson possui a grandeza da metamorfose, da mudança, dessa operação alquímica que, ao misturar elementos banais, recria novas formas, atribuindo nova valoração ao recém-criado e imaginado mundo. “Os rios riem mais alto assim que eu chego./ E brinca a brisa mais louca então./ Ai meus olhos, por que tua névoa prata?/ Por quê, ô dia de verão?” O sujeito lírico empreende uma busca em torno de si mesmo, só possível de ter continuidade em direção ao outro, através do qual ou no qual se transforma e com o qual, mesmo que, momentaneamente, se funde ou se confunde. Em Para a hora do amor, isso se processa tranqüilamente:
Vem devagar, Jardim!
A boca desacostumada,
Ruborizada, bebe jasmim
Feito abelha embriagada,
Que a flor alcança tarde,
ao redor do quarto arde,
Néctar, néctar — roga.
Entra, e em bálsamo se afoga.
A proximidade desta poética com a magia e a religiosidade nada mais é que do mais uma, das tantas tentativas de transformar o homem, lançá-lo além dos seus limites, fortalecê-lo para além de suas fraquezas, operar, portanto, sua condição de animal privilegiado, não apenas pela racionalidade cerebral, mas pela capacidade de transgressão. É nesse sentido, que Octavio Paz argumenta:
se o homem é transcendência, ir mais além de si mesmo, o poema é o signo mais puro desse contínuo transcender-se, desse permanente imaginar-se. O homem é imagem porque se transcende. As imagens do mundo, das coisas mais simples, do sujeito perdido em suas buscas são criadas por esse permanente imaginar, imaginar-se configurado a cada poema.
O eu e o outro se buscam, perdem-se nesse movimento constante. Muitas vezes esse outro é um elemento da natureza, portanto natural, outras vezes simples enigma indefinido, quase sobrenatural, mas na maioria das vezes, esse outro é o mesmo transfigurado ou recriado. Observemos a leitura de Para a hora do cuidado, que poderia ser reservado também para ser declamado na hora da perda:
Tinha nos dedos um anel
E fui dormir.
O dia quente, o vento ao léu,
Pensei: — Não vai sumir.
Acordo, e meus dedos honestos desdenho.
A jóia, perdi de vista.
Agora, tudo que tenho
É uma saudade ametista.
O anel nos dedos, um bem, um dia que transcorre tranqüilo, tudo é mais que imagem de objetos, é o próprio sujeito que se descreve e se escreve para, num piscar de olhos (cuidado!), perder o bem, perder-se. A jóia se foi, o sujeito possuidor da paz, do bem e da tranqüilidade adquirida perdeu-se. Restou, em si, a saudosa imagem ametista de tudo que se foi. A imagem poética se insinua, mas jamais é apenas uma, isso porque, segundo Paz, “a imagem não explica: convida-nos a recriá-la e, literalmente, a revivê-la. […] A imagem transmuta o homem e converte-o por sua vez em imagem […] E o próprio homem, desgarrado desde o nascer, reconcilia-se consigo quando se faz imagem, quando se faz outro”.
Assim, Emily Dickinson pode ostentar uma sabedoria ontológica e de expressão verbal raríssima, sua poesia recria a vida, pois tem consciência do ser inacabado, descontínuo, inconcluso que é o homem no mundo. Ao mesmo tempo a criação poética é o exercício da tentativa de unir o que foi ou sempre esteve separado. Como diria Paz da boa poesia: “No poema, o ser e o desejo de ser pactuam por um instante, como o fruto e os lábios. Poesia, momentânea reconciliação: ontem, hoje, amanhã; aqui e ali; tu, eu ele, nós. Tudo está presente: será presença”.
Um livro de horas não aglutina tudo de representativo na obra da poeta, mas é sem dúvida um belo convite ao mergulho de ser. Convida-nos a conhecer a obra de Dickinson, no seu talento de recriar a vida e pesquisar seus vazios, suas momentâneas possibilidades de comunhão e, mesmo, seu fim, no silêncio da morte que todos temem e tentam driblar ou adiar através do amor, da criação artística ou de tantos outros artifícios.