Há muito tempo, sim, que não lhe escrevo. Ficaram velhas todas as notícias. Não sou o mesmo homem estranho e esquivo: sou pior. Para trás ficaram as valsas e as donzelas do Império. Imagino você gordo, se arrastando em chinelas turcas e fazendo a corte às criadas, enquanto Aurélia, distraída, colhe os crisântemos do jardim. Não, Seixas, não me arrependo de nada. Enriqueci, ajudei alguns amigos, enganei outros. Agora, fito a enseada de Botafogo. O que era há vinte anos? Nada. E o que sou agora? Um infeliz, talvez, mas aplaudido pelos cronistas, proprietário único da Companhia dos Capitais Honestos e um dos pilares mais respeitáveis dessa nova República a que me adaptei com a desconfiança de um cão que muda de dono, mas nem por isso deixa de abanar o rabo. “O doutor Bento de Assis assinou o livro de ouro das viúvas polonesas.” “O advogado e capitalista Bento de Assis compareceu ao bota-fora do doutor Lobo Neves.” Recorto e coleciono essas notícias, como se esperasse que, daqui a um século, um desocupado qualquer se metesse a recompor minha biografia. Para esse futuro biógrafo, catalogo os fatos públicos. Os particulares, peço que os leia e lance à lareira de Petrópolis, sem deixar que Aurélia desconfie dessa matéria humana com que, de vez em quando, abasteço sua capacidade de mofar do mundo. Somos dois canalhas, Seixas. Você até hoje engana Aurélia, dizendo-se íntegro apesar de funcionário público, e encontra-se com Lucíola no Chat Noir, pagando-lhe em libras a nudez, e excitando-se só de pensar na inveja dos outros ouvindo você dizer: “além de mim, apenas o Barão do Rio Pardo entrou nesse corpo”. E eu me agrido na bebida, ao constatar que durante mais de duas décadas persegui o homem errado. Ai, meu doce Escobar! Como pude supor que um amigo de infância fosse me trair com minha mulher? Desvairado, cheguei a reconhecer no meu filho os traços físicos do antigo companheiro de seminário, quando, na verdade, ambos são tão semelhantes quanto o são uma cuba de vinho e um saco de batatas. Odiei o homem errado, Seixas. Percebi o meu engano quando, no dia aniversário de seus doze anos, acariciei, com fingida ternura, a cabeça de meu — chamo-lhe filho? — Ezequiel, e senti-lhe com vagar os ásperos cabelos. Não, não eram assim os de Escobar, nem são assim os que ainda me restam. Lina percebeu algo estranho e, beijando-lhe a cabeleira, disse ao menino coisas suaves, encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silêncio: aquele ali não podia ser meu filho, ainda que três mil duzentos e sete anjos anunciassem o contrário nas trombetas; as Escrituras, como você sabe, são muito retóricas, o que não quer dizer que sejam verdadeiras.
Por dever de ofício, quis iniciar o garoto nas Letras e na Política, para corrigir em sociedade o que a Natureza negara no berço. Citava-lhe Homero e Maquiavel. Levava-o à ópera, e ele não raro ressonava no Prelúdio, provocando risotas às famílias fluminenses. Mas como, o filho do doutor Bento não puxou ao pai? Eu, zeloso defensor da compostura, vendo Ezequiel roçar-se nas pretas da casa! Eu, que uma vez o chamei a ter comigo na batalha de flores do Campo de Sant’Anna, e ouvi de seus beiços a réplica insolente de que iria jogar o foot-ball num terreno baldio do Encantado! Aos dezoito anos meteu-se em pândegas na companhia de dois mulatos mais velhos, tidos por escribas: um tal de Barreto, que, dizem, acabou doido varrido, ensinando o tupi às grades do manicômio; e um outro, vulgo Machadinho, tipógrafo diurno, sonetista e galanteador depois das 20:00. Preocupava-me a nefasta influência dessas companhias e numa noite, depois de um Porto e antes de um Havana, perguntei a Lina se conhecia os vagabundos com quem andava metido o rapaz. Ignorava Barreto. Machadinho, sim, o teria visto duas ou três vezes, em saraus na casa de amigas, improvisando com grande talento uma cascata de versos sobre os temas do dia. Na primeira vez — lá se iam vinte anos — tinha ficado impressionada com um candente libelo que ele, ainda menino, declamara, em rimas ricas, contra a opressão da raça negra. Perguntei outras coisas, eu queria mesmo era descobrir o que teria levado minha esposa a registrar, de modo tão enfático, as virtudes do tal Machado. É tudo que sei, respondeu, e seu olhar ganhou o brilho metálico das vitrinas de joalheria. Por que, em vez de ler apenas as cotações da Bolsa, o senhor não se ilustra um pouco na seção literária das gazetas? Fingi não perceber a ironia, pois, afinal, sempre julguei a literatura uma coisa de mulheres, ou, no máximo, um bom meio de conquistá-las. Eu próprio, no seminário, tive fumos de poeta, e comecei a esculpir um soneto a que ficaram faltando doze versos. Os dois sobreviventes, no entanto, prenunciavam um escritor de certo mérito: “Oh flor do céu! oh flor cândida e pura”; “Perde-se a vida, ganha-se a batalha”. Começo e fim. No meio, as lutas que perdi contra mim mesmo, e uma raiva surda, tenaz, diante de tudo que escapasse das certezas. Ezequiel, por exemplo. Logo corri às gazetas empilhadas no sótão, e que seriam vendidas a quilo como contribuição de minha empresa aos órfãos das Alagoas. Lá estava, espremido entre um decálogo às noivas e uma prece a São Benedito, o retrato de Machadinho. Acenava miudamente para um figurão das Letras, um velho Coelho cuja pena prolífica faz jus ao sobrenome. O jovem apoiava a mão direita sobre um tampo de mármore, com os dedos bem abertos, e Coelho, ascendendo a escaleira da Colombo, retribuía o gesto com um sorriso superior de quem se sente ungido pelos deuses definitivos da Grécia. Apesar de os rostos se estamparem em pequena escala, semicobertos por um vendaval de bengalas, lunetas e cervejas, tive de admitir com clareza que aquela testa ligeiramente avançada, aquela narina direita espessa, aquele ângulo de 60º desenhado no braço que acenava, não eram exclusivos de Machado: eu os revia, diariamente, na figura de Ezequiel. Não me contive. Arranquei a foto, enfiei-a no bolso, fui bater à câmara de Lina. Mostrei-lhe o pedaço de papel, ficou pálida durante dois instantes, mas logo se recompôs. O que é isso?, quis saber. Aqui tens o pai de teu filho, respondi. O seu rosto com tanto engenho misturava firmeza e altivez, que qualquer incauto poderia jurar: eis aí uma mulher de bem. De repente, tudo passava a fazer sentido: Ezequiel e seu amor à capoeira, ao jongo, às rodas de violão e de baianas, era apenas uma segunda edição, piorada, do pai — que esse, ao menos, sabia metrificar. No dia seguinte, sem me despedir de Lina, mudei-me para um pequeno sobrado à rua Matacavalos. Mais tarde adquiri de um professor falido este belo palacete na enseada de Botafogo, de onde lhe escrevo fitando a tempos o oceano e, custa-me dizê-lo, pensando ainda nos braços dela, no seu olhar de chispas que prometiam tempestades, cataclismas, maremotos.
Amei minha mulher, Seixas. Não fiz como você, que se uniu a Aurélia para beber-lhe o capital no champanhe francês esparzido sobre o bico dos seios de Lucíola. Amei minha mulher. Passo as noites acordado, esperando manhãs que relutam maldosamente em surgir. Divago, especulo, custo a aceitar que a vida não seja algo tão firme e estável como o morro do Castelo. De madrugada, a cidade adquire o silêncio próprio de estátuas em jardins sem vento. Rememoro, então, todos os detalhes. Improviso às paredes discursos em alta voz, obtendo o beneplácito resignado das gravuras com bigodes e perucas ancestrais. Numa delas, minha mãe parece pensar: corno, mas brilhante. Poucos tribunos teriam tanta lucidez ao dissecar, num raciocínio irrespondível de parágrafos e alíneas, todas as evidências de sua própria ruína. Incentivado pelo aplauso implícito de meus mortos, tempero o relato com ingredientes dúbios: quem sabe se Lina não teria procurado Machado apenas para pedir-lhe que escrevesse os doze versos que faltavam ao soneto? Quem sabe, um poema com dois pais? Fora os sofismas de vigília, debitados ao meu desejo de ficar aceso mesmo ao preço de palavras arroubadas, nada sobra na manhã seguinte, quando o criado, rindo à socapa, encontra o ilustre Bento emborcado no escritório. Dá-me os bons-dias, ajuda a erguer-me, indaga a que horas o banho deve estar tépido.
Tudo poderia ser diverso, Seixas. Mas, agora, não posso senão acreditar que as máquinas do mundo se azeitaram para moer-me os sonhos. Não tive filhos. Restam-me a casa, o criado, os jornais, e uma cabeça que pensa, pensa, e só consegue destilar a náusea em gestos de caridade rentável e pública: eu dou esmolas como quem cospe. Tudo poderia ser bem diverso. O ex-futuro deputado. O quase provável ministro. Mas tropecei naquele amor. Tinha olhos de ressaca: me atirei sem bóia nesse mar. Afastei-me da costa, tive força de retornar e recolher os destroços: era quase nada. Náufrago a seco, pergunto-me hoje se não teria sido melhor deixar-me levar pelo turbilhão. Nadar, nadar, nadar, até perder a memória dos homens, e docemente sumir nas águas mornas e densas dos cabelos de Capitu.