Uma mulher e muitas lutas. Essa frase resume de forma simplista a vida de Sira, personagem central do romance homônimo, da espanhola María Dueñas, lançado no Brasil em setembro de 2021. Porém, Sira Quiroga já é conhecida dos leitores e telespectadores brasileiros — ela também é a protagonista do best-seller O tempo entre costuras, publicado em 2009 e adaptado com sucesso para uma série da Netflix, em 2013. O romance já vendeu mais de 5 milhões de exemplares no mundo e 200 mil no Brasil.
A escrita detalhista e potente de Dueñas — fundamentada por uma ampla pesquisa histórica e aliada à sua capacidade de criar personagens cativantes — a coloca como uma das principais escritoras espanholas da atualidade.
Em Sira, Dueñas segue narrando a trajetória marcada por tragédias da protagonista, submetida aos revezes do mundo em reconstrução após a Segunda Guerra Mundial. A trama perpassa fronteiras e se desenrola entre Jerusalém, Londres, Madri e Tânger. Mesmo enfrentando a dor do luto e com uma criança nos braços, Sira continua tentando equilibrar a vida pessoal com as missões como espiã do governo britânico.
A autora espanhola esteve recentemente em São Paulo para lançar Sira, e participou de um encontro com o público durante a Feira do Livro, na Praça Charles Müller, no Pacaembu. Aliás — vale o registro — o local virou palco para a foto histórica que reuniu centenas de escritoras brasileiras da atualidade, convocadas por Giovana Madalosso, o que comprova a crescente participação das mulheres na literatura de forma geral. María Dueñas concedeu entrevista ao Rascunho por e-mail.
• No romance Sira, a protagonista do best-seller O tempo entre costuras está mais madura, mais segura. Podemos comparar esse momento da personagem com o seu atual como escritora?
Bem, Sira é bem mais jovem que eu, nesse romance ela tem uns 35 anos. Mas a verdade é que ela é uma mulher muito mais madura e autoconfiante do que era em O tempo entre costuras. Além disso, no início do romance ela sofre uma terrível tragédia que também a torna mais desiludida, cética e crítica, menos inocente e vulnerável. No entanto, ela mantém seu carisma, e isso segue cativando os leitores.
• Por que escrever um novo romance tendo a costureira/agente secreta como protagonista, anos depois do lançamento de O tempo entre costuras?
Eu realmente nunca pensei que escreveria esta segunda parte, mas durante uma viagem a Tânger, no Marrocos, senti uma vontade irreprimível de escrever novamente um romance neste território tão próximo de mim e da minha família, e ao mesmo tempo tão excitante. Uma vez que decidi retornar narrativamente a esse universo, ficou claro para mim que teria que estar de mãos dadas com Sira, não poderia traí-la com outro personagem.
• Existe algum traço autobiográfico em Sira? O que aproximam personagem e autora?
Não, não há nada de autobiográfico; somos mulheres com personalidades e preocupações muito diferentes, que viveram trajetórias e experiências de vida totalmente diferentes. Mas talvez possamos ter algum traço em comum, como um senso de responsabilidade ou estabelecer prioridades com nossos filhos.
• Seus leitores são na maioria mulheres. Obviamente, há uma identificação com a protagonista e suas lutas. O que acha que mais aproxima Sira das mulheres reais?
Apesar de pertencer a épocas muito diferentes, há algo em Sira que a aproxima das mulheres do século 21. O fato de querer ter um papel justo na sociedade e no mundo, e não se limitar a questões puramente domésticas. Ou o esforço para encontrar um equilíbrio entre a maternidade e a atividade profissional, por exemplo.
• Como a maternidade influencia a postura de Sira diante das adversidades da vida?
Isso a torna duplamente responsável, sabendo que ela é o único suporte para aquela criança no mundo. E isso, por sua vez, lhe dá força e determinação para seguir em frente.
• Como você avalia a luta das mulheres por igualdade no mundo, levando em consideração que o machismo ainda perpassa as sociedades em praticamente todos os países?
Percorremos um longo caminho nas últimas décadas. Mas há um longo caminho a percorrer, um longo caminho ainda, para acabar com as desigualdades e abusos que muitas mulheres ainda sofrem. É por isso que devemos continuar levantando nossas vozes, criando referências e lutando contra as injustiças.
• A história se desenrola em quatro cenários distintos: Palestina, Grã-Bretanha, Espanha e Marrocos, no período pós-guerra, quando o mundo ainda se reconstrói e algumas potências sobressaem. Quais os motivos para que estes países sejam o palco do romance?
O tempo entre costuras acabou se concentrando no fim da Segunda Guerra Mundial, e Sira inicia bem nesse momento, quando o mundo começa sua tortuosa reconstrução, com intensos problemas pela frente. Minha intenção era focar justamente nesses conflitos como cenários para meu romance: a chegada de refugiados judeus na Palestina e as sérias tensões anteriores ao nascimento do Estado de Israel, a dureza da vida em uma Londres destroçada e empobrecida, a triste crise espanhola pós-guerra, a próspera Tânger dos anos anteriores à independência de Marrocos…
• Seus livros têm um enredo histórico muito bem fundamentado e amarrado. Como alia o seu processo criativo ao de pesquisa?
É verdade que para cada romance realizo um intenso trabalho de documentação, tarefa que ao mesmo tempo aprecio enormemente. Mas sempre tenho que me controlar, selecionando a quantidade de informações históricas que vou usar e pensando cuidadosamente em como integrá-las ao romance, para que não atrapalhe ou sobrecarregue a ficção e não seja desconfortável para os leitores. A chave é encontrar o equilíbrio, a combinação harmoniosa entre realidade e ficção sem mostrar as emendas, e eu me esforço constantemente para isso.
• Qual é a sua definição para um bom romance e como é possível construí-lo?
Um bom romance é aquele que conquista os leitores, e isso pode ser por motivos muito diversos: porque nos escapa, porque nos ilumina, porque nos comove, porque nos faz pensar, porque nos diverte. Acredito que fatores como a originalidade da ideia, a eficácia narrativa, a solidez do enredo, a credibilidade dos personagens… E talvez também um pouco de sorte na hora de ser lançado no mercado e a acolhida pelos leitores.
• O cenário devastador do pós-guerra está no centro de Sira. É possível relacionar aquele momento ao que vivemos hoje, por conta da pandemia de covid-19, respeitando suas diferenças?
Acho que o que aconteceu com a Segunda Guerra Mundial foi muito mais angustiante, de partir o coração e doloroso. A reconstrução da Europa levou décadas, milhões de jovens morreram e as feridas humanas, sociais, econômicas e morais levaram muito tempo para cicatrizar. A pandemia também abalou todo o planeta e teve efeitos e repercussões muito adversas, mas em pouco mais de dois anos já temos o mundo em movimento novamente; sua profundidade como tragédia e seu impacto foram muito menos graves.
• Você tem uma história pessoal com Tânger, no Marrocos. Como a cidade lhe inspira a escrever?
A minha família por parte de mãe viveu durante décadas em Tétouan, no antigo território espanhol em Marrocos, com laços estreitos com Tânger. Minha mãe nasceu lá em 1940, lá viveu sua infância e juventude, um paraíso feliz que deixaram em 1957, após a independência de Marrocos. E eles nunca se livraram da memória daquele tempo. Esses anos de presença espanhola no norte da África são parte fundamental do legado familiar, e sinto um carinho e interesse máximos por esse universo, que reflito na minha literatura e no meu cotidiano, com viagens constantes.
• Como a literatura transformou sua vida, colocando-lhe entre uma das autoras mais lidas no mundo?
Eu separo essa questão com a maior facilidade. Quando tenho compromissos públicos relacionados aos meus livros, cumpro-os com prazer e responsabilidade. Mas no meu dia a dia sou uma pessoa absolutamente normal, com uma vida pessoal plena.
• Que tipo de literatura lhe atrai como leitora? Poderia citar seus livros e escritores favoritos?
Tenho gostos muito variados, costumo ler romances, mas também adoro biografias. Leio de tudo, em inglês e espanhol, narrativas espanholas, europeias, latino-americanas, norte-americanas… autores contemporâneos ou clássicos. E para citar uma referência, volto sempre a Dom Quixote.