A ignorância é a mãe de todos os males.
(François Rabelais | 1494-1553)
[…] o nosso povo é nômade, e um povo nômade não pode carregar centenas de coisas, centenas de estantes de livros… ficar acumulando uma porção de coisas dentro de casa. Um povo nômade sabe que é um povo que está de passagem, está andando por este planeta. Não por estar mudando de lugar, mas porque, dentro de si, ele também está de passagem, assim como todas as pessoas.
Releio o livro Mundurukando, do amigo Daniel Munduruku, editado pela UK’A Editorial em 2010, ao mesmo tempo que as notícias dos assassinatos cruéis de Bruno Pereira e Dom Phillips bombardeiam nossas consciências brancas que pensam que podem, sim, serem permanentemente donas e possuidoras das coisas deste planeta.
O mundo (e nosso país em particular) chegou a um grau tão grotesco de decadência civilizatória que até uma das grandes conquistas das ciências humanas, a noção de tempo na história, parece que perdeu terreno face à ilusão do poder eterno dos poderosos contemporâneos que nos congela no aqui e no agora, como se o devir do movimento real da sociedade já não fosse mais possível. O “está tudo dominado”, expressão que os detentores do mando oficial compartilham com os bandos criminosos, aterroriza e procura estimular nossa tendência ocidental a nos submeter à culpa misticamente cultivada e a exaltar o endeusamento da propriedade como bem supremo que distingue os “homens de bem” do restante dos seres humanos. Esses seres de segunda classe, incapazes, e a natureza selvagem, por sua vez, só podem ser subservientes e dominados, na lógica perversa desses tempos sombrios.
Não é por acaso que constatamos os milhares de brasileiros, nossos vizinhos, parentes ou amigos de infância, ainda aplaudindo o abominável que nos preside no mais alto cargo público do país. Não vivenciamos apenas um ciclo político social onde os métodos fascistas de governar, hoje travestidos da retórica neoliberal que criminaliza a política e exalta o “gestor eficaz”, sejam o centro dos impasses e angústias individuais e coletivas. Pensando o que muitos identificam como crise civilizatória, crise de valores humanísticos, agonia da democracia enquanto valor universal, entre outros estudos e análises importantes para a compreensão deste período histórico, reflito que quaisquer que sejam as raízes, e elas são complexas e diversas, estamos colhendo os frutos de fomentar uma sociedade que cultiva a ignorância há séculos.
É a ignorância, na acepção do conceito — a ausência de conhecimento —, que torna os cidadãos incapazes de exercer a própria cidadania, de viverem uma vida toda sem afirmar nada. Incapazes até de exercer o erro, pois este também é afirmativo, embora afirme sem razão.
Se hoje existem milhares de mecanismos de manipulação política e controle social, e isso é uma verdade, não vejo como eles teriam tanto poder de ocultar a realidade se não tivéssemos uma parte enorme da sociedade envolvida pelo manto excludente da ignorância.
Como entender que dados contundentes da gestão governamental que arrasam o país, e são evidentes, não sejam levados em conta por aqueles que seguem fiéis ao inominável presidente? Esses dados não são poucos e atingem milhões. Em 3 de maio deste ano, Maria Cristina Fernandes, perspicaz analista de política do jornal Valor, sintetizou os desastres governamentais que colocaram o país a nocaute: péssima gestão do covid-19 — o país tem 11% das mortes mundiais pela pandemia e sua população é de apenas 3% da população do planeta; a inflação é a maior dos últimos 27 anos; o país voltou ao mapa da fome e o orçamento de habitação popular caiu 98%; apenas em 2021 houve aumento de 300% de registros de armas de fogo e o Atlas da Violência demonstrou o aumento por mortes violentas no país que havia diminuído na pandemia; recursos de combate ao trabalho infantil foram reduzidos em 95% e o desmatamento em terras indígenas cresceu 138%. Todos esses itens se somam a outros igualmente aterradores, como o aumento de 171% do preço do combustível desde o início do governo ou o recorde de inadimplência da população que chegou ao espantoso número de 66,1 milhões de pessoas com uma dívida total em torno de R$ 271 bilhões, conforme se pode verificar nas principais publicações do setor financeiro.
Os dados são objetivos, influenciam diretamente a vida de milhões e indiretamente atingem até os mais abastados das classes médias que veem espaços urbanos coletivos ocupados pelos que não têm onde morar, pelo aumento da violência decorrente da miséria, da degradação do meio ambiente e das melhorias conquistadas na saúde, na educação, na cultura e no transporte coletivo.
Tudo caminha como se o país fosse para o abismo, cujo símbolo mais abominável é o cenário da volta da fome em escala gigantesca. Dados da Oxfam Brasil (oxfam.org), em junho de 2022, demonstram que atingimos o infamante número de 33,1 milhões de conterrâneos que não têm o que comer e que 58,7% da população vive em algum grau de insegurança alimentar, com o país regredindo nos últimos quatro anos a índices da década de 1990.
Se é evidente que não será fácil recuperarmos os patamares duramente conquistados desde o renascimento da república em 1988, com a promulgação do que se chamou Constituição Cidadã, será preciso muito zelo e cuidado com as políticas públicas que um eventual novo governo possa criar e desenvolver.
As promulgações de medidas tecnicamente imprescindíveis para a economia e o desenvolvimento sustentável, que iniciem a recuperação econômica do país, não podem deixar de lado a necessária decisão estruturante de se investir responsavelmente em educação e cultura que, a médio e longo prazos, poderão de fato, e finalmente, legar um país de verdade aos nossos filhos e netos.
Lutar contra a falta de conhecimento, contra a ignorância, é tarefa improrrogável de um novo governo que escute e atenda as necessidades de todos e todas, como determina a Constituição e nossa humanidade exige.
Mas não basta apenas a decisão de retomar ou criar políticas públicas que fomentem a educação e a cultura e ocupem o lugar da ignorância que escraviza.
É preciso que essas políticas quebrem os grilhões da ideia de conhecimento elitista e excludente aqui praticado tantas vezes. É preciso ouvir a sabedoria dos povos originários, é preciso ouvir as comunidades das juventudes, das mulheres, dos segmentos sociais marginalizados por séculos de racismo estrutural e pela xenofobia que não aceitam as diferenças e o contraditório. Hoje todas essas forças não apenas resistem à destruição a que o genocida governante nos submete, mas são nelas que constatamos o surgimento de novos métodos de construção de sociabilidades, de compartilhamentos, de ajudas mútuas que se distanciam da ideia colonialista de caridade e criam economias comunitárias exitosas e paralelas à exploração do neoliberalismo vigente.
Um novo tecido social parece surgir deste caos em que o Brasil e grande parte do mundo ocidental se enfiaram apenas para fazer crescer as burras de meia dúzia de magnatas que somente fomentam novos ciclos destrutivos.
Aqui do meu canto vislumbro o basta a essa destruição nos momentos em que observo o trabalho dos que formam leitores nas comunidades e escolas e procuro projetar esses movimentos em escala de política pública. Em meados deste junho, dando suporte linguístico ao bravo Bruninho Souza, da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura/SP, em uma atividade do seminário www.leeriberoamericalee.com com jovens de 14 a 17 anos da periferia de Madri, todos eles filhos de imigrantes, boa parte negros, meninos e meninas que vivem a marginalidade social, pude constatar novamente a universalidade da linguagem da juventude ao identificar seus obstáculos num mundo hostil. Construíram naquela oficina de duas horas uma ponte onde a amorosidade triunfou sobre a xenofobia e a exclusão em ato comum de grande significado e aprendizado político. O esperançar de Paulo Freire se manifestou ali mais uma vez. Um mundo mais justo e equânime mostrou-se possível.