🔓 Músicas, musgos e pterodáctilos

Na contramão do imediatismo da sociedade, a cronista se dá o direito de ficar no carro esperando acabar uma canção de Janis Joplin e, às vezes, olhar para o nada
Ilustração FP Rodrix
23/06/2022

Chegamos mas não quero sair do carro. A música ainda não acabou.

Mais uma estranheza minha no mundo.

As pessoas não acham normal você ficar sentada dentro do carro, no estacionamento, esperando a música acabar.

Há um imediatismo em tudo o que diz respeito a chegadas.

Chegadas, já nos ensinou a física clássica, é algo muito relativo.

Eu nunca chego a lugares. Sempre me considero em passagem, em movimento, em fluxo. O que é bastante irônico considerando que, para quem olha de fora, estou normalmente quieta olhando para o nada.

Janis Joplin ainda se esgoela quando desligo o carro, completamente vencida. Oh Lord, won’t you buy me a Mercedes-Benz? Dirijo um carro popular. Fico achando que Janis ri de mim, de algum outro lugar onde ela, também, é transitória.

Não faz mal. Perco com frequência, estou acostumada. Levanto e, sob olhares atentos, começo a andar.

A trilha sonora muda, mas essa é uma cena recorrente.

Começo a andar e tudo, absolutamente tudo, chama a minha atenção.

O musgo sobe na parede lado a lado com uma trepadeira qualquer. Parece uma buganvília mas eu não lembro nome nem de parente, não vou lembrar de planta.

Passa um cachorro. O dono do estacionamento faz um carinho. Parecem ser velhos conhecidos. Ou não, não importa.

Pego o papelzinho que me garante que meu carro será devolvido. Fascinante como toda nossa sociedade está organizada em torno de papeizinhos sem valor qualquer intrínseco. Todo o valor que atribuímos a recibos de estacionamento, papel moeda, certidões e afins é uma literatura. Eu digo que o que está no papelzinho vale tal coisa, você acredita e assim seguimos. Somos mais do que seres de linguagem. Somos seres de ficção. Inventamos o mundo à nossa volta e criamos deuses à nossa semelhança.

O musgo é lindo.

Janis ainda canta-grita dentro da minha cabeça.

Guardo o papelzinho dentro da capinha do celular e seguimos em direção ao restaurante.

A escada é de um vermelho tijolo lindo.

Tem um gato em cima do muro. Ele me vê. Nos respeitamos à distância.

Restaurante vazio, com poucas mesas ocupadas. A crise ou o horário?

Peço para ficar virada para a porta, como sempre. Deve ser alguma memória genética qualquer. Medo do pterodáctilo, da onça ou da máfia italiana, sei lá. Não importa. Sentamos.

Namorado sorri.

Olho o menu e me parece tudo exatamente o mesmo. Percebo que ainda estou no carro, ouvindo Janis.

Se concentra, Carolina, você é alfabetizada, você consegue ler um menu.

Volto à primeira página. Pareço indecisa mas isso é um engano. Não sou indecisa, sou distraída.

Alguém na mesa escolhe algo que me parece relativamente seguro e digo, preguiçosamente, eu também.

O olho que cuida do pterodáctilo também presta atenção na briga de família da mesa ao fundo, no casal de adolescentes ao nosso lado, no maître à beira de um ataque de nervos e no entregador que entra pela porta errada.

Se pareço distraída é porque estou.

Voltamos para casa e, na garagem, a música ainda toca. Outra. I put a spell on you. Desisto e saio do carro. Me perdoe, Nina.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho