Minha arte é cheia de compaixão por todos aqueles que iludem a si próprios. Mas, é inevitável, que esta compaixão seja seguida pelo escárnio feroz a um destino que condena o homem à mentira.
Luigi Pirandello
Na vasta produção literária e dramatúrgica de Luigi Pirandello, há um eixo central que parece orientar qualquer tipo de análise que se queira fazer sobre o grande autor. Como fio resistente, a conduzir a composição deste imenso e colorido bordado ficcional, está o conceito originalíssimo que ele desenvolveu sobre o humor.
De fato, embora saibamos que o humorismo e sua conceituação remontem à antigüidade, o que melhor o caracteriza, hoje, é a natureza dividida do homem moderno. Entre os vários autores que tratam da questão deste “homem ao meio”, apenas para lembrar um, Italo Calvino em sua famosa trilogia: O barão nas árvores, O visconde partido ao meio e O cavaleiro inexistente, além de tantos outros como Italo Svevo, Georg Büchner, Dostoiévski, Max Frisch, Camus, etc., como bem ilustra Victor Brombert, no estudo: Em louvor de anti-heróis.
O que Pirandello acrescentou como pedra de toque de seu repertório ficcional, inovando, de certo modo, a representação desse mal-estar do homem moderno, foi o fato de que seus anti-heróis não vivem, mas vêem-se vivendo. É por esse viés que ele atualiza o trágico na modernidade, na medida em que aponta à inconstância de seus personagens, sempre em crise, devido ao aprisionamento dilacerante do inevitável jogo de máscaras que se lhes impõe. Esses seres problemáticos, em essência, representam a angústia de quem tem que dar conta de uma máscara exterior e de outra interior, quase sempre discrepantes. Daí porque o crítico, tradutor e organizador destas 40 novelas de Luigi Pirandello, escritas entre 1894 e 1934, Maurício Santana Dias, em seu prefácio, acertadamente, constata:
As figuras criadas por Pirandello são indivíduos partidos ao meio, como Mattia Pascal, ou pulverizados, como Vitangelo Moscarda. “Heróis da vida intersticial”, diz o crítico Giancarlo Mazzacurati, são todos eles “sobreviventes de uma catástrofe da ideologia oitocentista cujo estrondo só se ouvirá plenamente durante a Grande Guerra. Eles já pedem para viver não acima nem dentro, mas debaixo da história: e, enquanto os Andrea Sperelli ou os Giorgio Aurispa (personagens de Gabriele D’Annunzio) reclamavam uma identidade mais forte do que o tempo que estavam atravessando […], estes, ao contrário, buscarão uma ética mais fraca ou flexível, em matrizes intemporais ou nas dobras secretas de uma sociedade já massificada.”
A sustentar essa linha de raciocínio, o conceito pirandelliano de humorismo traduz o humor como uma qualidade da expressão em qualquer gênero literário e define-se, basicamente, pela busca da criação de um sentimento do contrário. Ora, poderíamos afirmar que qualquer efeito cômico precisa destacar o contrário, a composição de imagens em contraste, para atingir seu propósito. Mas o que Pirandello traz de novo a isso é que ele põe em cena os processos psíquicos de interiorização do cômico, a partir da reflexão, que, em nenhum momento se confundem com a ironia.
Apenas quando se dá conta do que lhe está ocorrendo, por um doloroso processo de internalização dos fenômenos ao redor, ao sentir, na própria pele, o flagelo da descoberta de que tudo é ilusório é que o protótipo deste anti-herói transforma a percepção em sentimento. E o humorista será o artífice dessa farsa trágica da vida.
Como o outro me vê
O nó trágico, então, só se ata porque o anti-herói tem plena consciência da farsa. Como se tomasse distância da própria vida e visse a si mesmo, ridicularizado pelo olhar do outro, que, onipotente, será o espelho a apresentar as deformidades que o seu olho egocêntrico e vaidoso, muitas vezes, não consegue ver.
Se não refletisse sobre, se não fizesse esse exercício continuado de autopercepção que o crítico Giovanni Macchia compara a uma “sala de tortura”, não cairia na dúvida atroz e permanente: vemo-nos na nossa verdadeira realidade ou como gostaríamos que nos vissem? Essa é, por exemplo, a infeliz surpresa que o protagonista Vitangelo Moscarda tem logo às páginas iniciais de Um, nenhum e cem mil (último romance de Pirandello, que levou dez anos para ser escrito, de 1916 a 1926) ao descobrir, por meio do olhar de sua mulher, o defeito do próprio nariz. Essa espécie de susto desencadeará a dúvida que o perturbará intensamente, a ponto de fazê-lo imaginar-se, não mais um único Vitangelo, mas mil, pois haveria uma identidade diversa, respectiva a cada um dos olhares que os outros lhe dirigissem. Ao final, diante do insuportável, dessa fragmentação total do eu, acabará reduzido a “nenhum”, fora do sistema, internado como louco.
O desconcerto advém do choque da revelação do inusitado, do imponderável, como se, de repente, fôssemos desnudados, diante de um jogo especular, em que se evidenciasse aquilo que, por conveniência, nossa auto-imagem não revela. A consciência de si implica na definição de consciência como: os outros em nós.
“Pirandello reconhece e transmite de maneira premente”, diz Raymond Williams, em Tragédia moderna, “o sofrimento que leva ao auto-engano e à fantasia”. É, precisamente, desse choque entre a ilusão que construímos sobre nós mesmos, em confronto com a imagem que os outros criam de nós, que o autor italiano extraiu o sumo deliciosamente amargo de suas narrativas, num cômico interiorizado, filtrado pela reflexão.
O riso melancólico, assim, se configura não apenas pela justaposição de elementos paradoxais, mas pela exacerbada percepção que, na minuciosa atenção a cada detalhe, o anti-herói pirandelliano vai descobrindo sobre si mesmo, em relação aos outros.
O perfume dos limões da Sicília
Como marca indelével, sublime cicatriz do corte umbilical, da qual não quer se livrar nunca, Pirandello carrega sua Sicília, terra mãe impregnada em tudo que toca e expressa. Dela parte e a ela sempre torna, como nas viagens de eterno retorno à casa ancestral.
Mas, desta vez, as imagens por contraste a compor a primeira novela que abre o livro, intitulada Limões da Sicília, não conseguirão preservar o cheiro peculiar daqueles limões, ícones de representação da terra idealizada, na preservação irretocável da memória original, quase paradisíaca.
O anti-herói Micuccio terá que perfazer a dura viagem, partindo da província de Messina, uma noite e um dia inteiro de trem, para ver estilhaçar-se, em cacos, o vítreo espelho de sua ilusão.
Há cinco anos, teria tirado a bela Teresina, sua noiva, da miséria, incentivando-a a investir na voz canora, como forma de libertá-la da vida de sacrifícios que levava na província. Pagara-lhe o professor de canto, comprara-lhe até um piano, a fim de que aprimorasse os dons musicais. Tanto fez que a jovem acabou sendo convidada a mudar-se para Nápoles, a fim de seguir promissora carreira artística. E assim, acompanhada da mãe, Marta, se fôra e, desde então, nunca mais a vira. Porém, ele mantivera aceso o sentimento que nutria por ela, mesmo a distância, imaginando que a recíproca fosse verdadeira.
O que se dá, entretanto, quando Micuccio chega a Nápoles, é a construção de uma série de elementos e imagens em contraste, que vão criando, pela habilidade artesã da voz narrativa em terceira pessoa, aquele espelho que faz com que ele descubra o que antes não conseguia ver. Melhor ainda, faz com que o protagonista se veja vivendo, num esmiuçar torturante de percepção da verdade.
O que ele passará a ver, aos poucos, é comparável ao abrir lento e quase sádico das cortinas do palco teatral, num procedimento requintado de dramaturgia narrativa que, adiando a revelação, sabe do poder desse descortinar arrastado e não abrupto ou pontual. Não é à toa que o organizador destas novelas elegeu como um dos critérios para sua seleção, as que se prestaram, a posteriori, para o teatro.
Assim, Micuccio terá de perfazer, depois da travessia concreta do estreito à península, a mais difícil viagem: a da perda das inocências, por meio da constatação de que o luxo da casa de Teresina — agora, conhecida como Sina Marnis — era fruto, não do brilhantismo de uma carreira honesta de cantora bem-sucedida, mas sim de certos favores, concedidos em retribuição a seu comportamento exuberante e libertino.
Numa primeira leitura, talvez, se pudesse aproximar este simplório anti-herói do viés, um tanto patético, daqueles personagens demasiadamente crédulos e desprotegidos, que acabam espoliados, vítimas do sistema que não abre espaço para inocências. Um pouco como a prostituta Cabíria de Fellini que, cega de paixão, presa fácil das armadilhas que cria para si mesma, acaba cedendo às investidas do sedutor inescrupuloso que só visava a tomar-lhe as economias. Mas, Cabíria, também, um tanto quanto a Macabéa de Clarice Lispector, possui a aura iluminada e frágil que a eleva à condição sublime dos puros que, inevitavelmente, pela falta de consciência do que lhes ocorre, sucumbem às mais diversas atrocidades. São como pássaros de gaiola, não adestrados ao vôo, que terminam nas garras afiadas de uma sociedade cínica e desumana.
Já este Micuccio pirandelliano, exemplo pontual no elenco de tantos outros crédulos, bem-intencionados, complexifica o pathos das anti-heroínas mencionadas. Seu sofrimento é aguçado pela consciência que passa a ter do ridículo de seu próprio papel.
O que Pirandello acrescenta, como um refinamento de espírito desses tipos demasiado frágeis, é a dialética-força que passam a adquirir, por meio dos exercícios continuados de auto-reflexão. Muito mais do que o mero compadecimento de si mesmos, que poderia induzir ao fácil melodrama, tem-se aqui o distanciamento necessário do que vai vendo a si próprio, tomando ciência do riso sarcástico que lhe dirigem:
Estava tudo acabado… fazia tempo, fazia tempo, e ele, tolo, ele, estúpido, só se dava conta agora. O povo da cidade havia avisado, e ele se obstinara em não acreditar… E agora, que papel fazia ali, naquela casa? Se todos aqueles senhores e se o próprio criado soubessem que ele, Micuccio Bonavino, moera os ossos para vir de tão longe, trinta e seis horas de trem, ainda seriamente se acreditando o noivo daquela rainha, quanta risada dariam os senhores e o criado e o cozinheiro e o ajudante e Dorina! Quanta risada, se Teresina o arrastasse diante deles, ali na sala, dizendo: “Olhem, este pobre coitado, tocador de flauta, diz que quer ser meu marido!”
Com o intento de compor o que chama de sentimento do contrário, na base de sua teoria sobre o humor, Pirandello lançará mão de uma série de artifícios do narrar, consciente de que, para atingir o riso melancólico, faz-se necessário exagerar, ao limite da deformidade e da loucura, o processo de ruptura da imagem que o indivíduo tem de si mesmo com a que passará a ter, a partir dos espelhos que os outros lhe mostrarem. Por isso, a carga dramática precisa estar concentrada nos processos psíquicos de interiorização que o anti-herói vai desenvolvendo, ao longo da narrativa, o que estabelece o elo necessário entre ser e parecer, perceber e sentir.
A personagem contraponto desta novela é a mãe, dona Marta que apenas por meio de gestos, olhares e poucas palavras revela o seu desgosto, em relação à vida desregrada da filha.
Logo ao início, quando da descrição de Micuccio, chegando à casa da noiva, conta-se que ele carregava, de um lado, uma sacola suja, de outro, uma velha maleta em contrapeso. Dentro da simples sacola, se saberá, apenas, ao final, ele trazia perfumados limões sicilianos. Seu intento inicial era o de presenteá-los a Teresina. Quando descobre que ela já não era mais a mesma, resolve dá-los a Marta, como um consolo aos desalentos da pobre velha, que os aceita, comovida.
No desfecho, totalmente desiludido, mais pela consciência de ter tido que se ver com as lentes dolorosas do auto-engano, do que pelo fato em si, Micuccio parte.
Teresina, que se dedicava a entreter elegantes cavalheiros no salão de festas da bela casa, se dirige à ante-sala e vê os limões nas mãos da mãe. Numa atitude intempestiva, sob os protestos de Marta, decide exibi-los aos convidados, gritando eufórica: “— Limões da Sicília! Limões da Sicília!”
Não há como não notar certa semelhança entre o trajeto que os limões vão ter que cumprir, desde que saem da Sicília, à travessia do próprio Micuccio. Originalmente frescos e perfumados, puros representantes das dádivas da terra mãe, dos recônditos lugares da memória do que se cuida ritualisticamente, os limões, assim como o protagonista, ao chegar, estão intactos, preservados nos invólucros do que ainda não se sabe.
Depois que a verdade vem à tona, ainda como último resquício da imaculada terra, há a passagem significativa dos limões, das mãos de Micuccio para as de dona Marta. Aqui, tem-se a impressão de que, ao menos, o sumo da importância de certos valores não se deixará tragar pela voragem das transformações sofridas pelos personagens, nem pelo inevitável desgaste das relações humanas, no decurso do tempo. Como se o perfume daqueles frutos insistisse em permanecer, apesar dos novos e apelativos odores, impregnando o coração dos que o inalam, com o cheiro sinestésico de uma identidade, de um reconhecimento.
Porém, nem esse mínimo alento, será concedido.
Ao retirar das mãos da mãe os limões, levando-os à sala dos prazeres de sua nova vida, a ex-Teresina, pobre moça de Messina, noiva de Micuccio, aspirante à nobre carreira de cantora, assume, por completo, sua nova desgarrada identidade. Ela, agora, é a exuberante Sina Marnis e não há nada que a faça retornar nostalgicamente às próprias raízes, nem mesmo o perfume inigualável dos limões sicilianos.
Teatro até a alma
Foi com o sucesso de sua dramaturgia que Pirandello obteve reconhecimento mundial. Explorando, ao máximo, os limites da arte da representação, buscou uma nova linguagem cênica, metateatral, especialmente, a partir da conceituação de personagem.
De fato, nesta antologia de quarenta novelas, em que trinta vieram a se tornar peças, há três narrativas — Personagens, Tragédia de um personagem e Conversas com personagens — que serão o germe inicial de Seis personagens à procura de autor, sua obra dramatúrgica mais famosa.
Nelas, o que se evidencia é a passagem da condição de persona à de personagem, como se, de repente, importasse, acima de tudo, revelar, escancaradamente, o que, via de regra, se esconde atrás dos bastidores. Trata-se da tentativa de explicitar o mecanismo e a magia da criação artística, começando pela desintegração do espaço teatral e pela angústia de personagens, que procuram um autor que as revele integralmente.
Antes de serem uma plausível reflexão teórica, a respeito do teatro propriamente dito, estas novelas abrangem a essência de uma verdadeira Ars Poetica, aplicável aos conceitos de ficção literária e de arte em geral.
Na primeira delas, Personagens, um narrador escritor receberá, em audiência, “os senhores personagens” de suas futuras novelas. O que mais chama atenção, em seu discurso, monológico e direto, é que ele busca apresentar uma teoria sobre como a verdadeira arte deve se reger. De modo veemente, ele critica a postura artística que se fixa em padrões rígidos que “tornam as almas imóveis”.
Contrariamente aos artifícios de uma arte que visa à placidez, num mundo sem obstáculos imprevistos, que deformam o caráter dos indivíduos, questiona:
Na natureza, não encontramos o ouro misturado com a terra? Pois bem, os escritores jogam fora a terra e apresentam o ouro em moedas raras, de metal puríssimo, bem fundido, bem pesado, com suas marcas e emblemas bem impressos. Mas as experiências ordinárias, os particulares comuns, em suma, a materialidade da vida tão variada e complexa não contradizem asperamente todas essas simplificações ideais e artificiosas? Não constrangem a ações, não inspiram pensamentos e sentimentos contrários a toda lógica harmoniosa dos fatos e dos caracteres concebidos pelos escritores? E o imprevisível que há na vida? E o abismo que há nas almas?
No fundo, esse tom de indignação reage a um conceito de arte, que vigorou especialmente até os questionamentos propostos, sobretudo, em meados do século 19, a partir de Baudelaire. Pirandello, em consonância com a consciência narrativa do personagem escritor de sua novela, reivindica, a mesma perda do halo do poeta francês do Spleen de Paris, que deixa cair sua divina coroa de artista, no lodaçal de macadame. A arte encontra-se, sim, nos lugares mais apoéticos e a nova estética precisa da dessacralização, para enaltecer a vida, com todas as suas particularidades, inclusive as mais deformantes, grotescas, imprevisíveis.
Em outros termos, saindo do púlpito, descendo, decaindo ao nível do quotidiano vulgar e pleno de banalidades, o artista terá condições de sujar as mãos de vida, podendo, enfim, representá-la visceral e integralmente. Talvez, como a metáfora do anjo caído de Asas do desejo, de Wim Wenders, que abdica, por amor, de sua condição estável, descendo a terra, sofrendo até as últimas conseqüências, o fato de ter se humanizado.
Indignado contra os personagens que lhe pedem para retratá-los belos, por não suportarem a descrição minuciosa de seus defeitos físicos e morais, este personagem escritor empunha um grande espelho, que cria a alteridade necessária, para que cada indivíduo se conheça, a partir do olhar do outro, aquele capaz de lhe fazer ver o que sua miserável condição humana não permite.
Assim agindo, preconiza uma nítida poética da criação, não apenas na arte teatral, mas como postura filosófica de possível leitura do mundo.
No texto seqüencial, A tragédia de um personagem, dialogando com o anterior, teremos a mesma voz narrativa do escritor, na abertura, só que, dessa vez, uma das personagens é que acabará assumindo as rédeas do narrar, propondo ao autor uma revisão dos modos como encara seus personagens.
É assim que o doutor Fileno, indignado, pede ao autor que lhe conceda o privilégio de viver, mas com a dignidade, capaz de dar conta de sua existência, para além dos limites do papel:
Ninguém melhor do que o senhor pode saber que nós somos seres vivos, mais vivos do que aqueles que respiram e vestem roupas; talvez menos reais, porém mais verdadeiros!… Quem nasce personagem, quem tem a ventura de nascer personagem vivo, pode até mesmo esnobar a morte. Não morre mais! Morrerá o homem, o escritor, instrumento natural da criação; a criatura não morre mais! E, para viver eternamente, não necessita de dons extraordinários ou de feitos prodigiosos. Diga-me quem era Sancho Pança! Diga-me quem era d. Abbondio! Entretanto eles vivem para sempre porque, germes vivos, tiveram a sorte de encontrar uma matriz fecunda, uma fantasia que os soube criar e nutrir para a eternidade.
Seja como personagem autor, ou como personagem à procura de autor, o que essas consciências narrativas proclamam, acima de tudo, é a relativização dos modos de narrar, a volubilidade das máscaras e dos papéis que podem ser múltiplos, porque infinitas são as possibilidades de ver e perceber a realidade ao nosso redor.
A desintegração do palco cênico corresponde à desintegração da identidade coesa do eu em equilíbrio, para ceder espaço ao universo instável e fragmentário de personagens em crise, que representam a vulnerabilidade do homem moderno, numa verdadeira ode ao caos.
Gerado no Kaos
Na cena que abre o filme Kaos dos irmãos Taviani, adaptação feita a partir de contos e novelas de Luigi Pirandello, quase como epígrafe ilustrativa do que se passará a exibir ali, há a seguinte confissão do escritor:
… eu, portanto, sou filho do Caos, não alegoricamente, mas de fato, pois nasci num campo situado perto do imbricado bosque chamado Càvusu pelos habitantes de Agrigento: corruptela dialetal do genuíno e autêntico vocábulo grego Kaos.
Se pensarmos que a palavra caos pode ser definida, filosoficamente, como o vazio obscuro e ilimitado que precede e propicia a geração do mundo, talvez encontremos aí um possível índice para decifrar a esfinge que guarda toda obra do famoso autor italiano.
Assumindo-se como caótico, desde sua gênese, Pirandello criador encarna, seja como ficcionista, dramaturgo ou teórico, o célebre preceito nietzscheano de que “é preciso haver um caos dentro de si, para gerar uma estrela dançante”.
É, sem dúvida, a partir do caos dilacerante, fragmentário e múltiplo do homem moderno, travestido em suas infinitas máscaras que, ao fim, apenas revelarão a angústia de um vazio existencial, que ele reinventa o trágico, no início do século 20.
Toda sua matéria ficcional, em síntese, parece advir da consciência dessa inevitável cisão entre ser e parecer, o que implica necessariamente tocar na exaltação da decadência como fonte inesgotável de transfiguração da vida. Daí o porquê de se buscar na dinâmica imperfeita e caótica da vida como ela é, cheia de particularidades que fogem a qualquer idealização apolínea, a poção dionisíaca da arte. Daí o porquê de não ser possível atender ao pedido de certos personagens, que interpelam o autor, para que os retrate belos. Ao contrário, é preciso que se lhes apontem os defeitos, pois estes são os únicos antídotos contra a doença do auto-engano, das trapaças da ilusão.
Não é à toa que o travestir-se, disfarçar-se, mascarar-se está na base da criação pirandelliana. De certo modo, como afirma Nietzsche, essa é uma das formas encontradas pelo homem moderno para combater o medo e a fragilidade, diante do horror da total desintegração do eu.
O mascaramento nasce, portanto, da insegurança, do constante estado de alerta e ameaça, em que vive o homem moderno, e que se alarga e arrasta a estes nossos tempos hipermodernos, porque somos nós os herdeiros de Hiroshima, holocaustos, do final das utopias.
A genialidade de Pirandello, nesse sentido, vai muito além das questões da identidade humana (Um, nenhum, cem mil) ou da urgência de se criar outra vida dentro daquela que se vive, para não sucumbir às pressões de toda ordem (O falecido Mattia Pascal).
À sua época, foi o escritor italiano que melhor compreendeu a necessidade de redimensionar o conceito de arte, que, como representação, precisa abrir-se a um universo que se renova a cada instante, já que em constante metamorfose.
Em Pirandello, a origem genesíaca do caos assume a força movediça e vulcânica da Itália meridional, que, justamente, por fazer a terra toda tremer, traduz a instabilidade do olhar e do sentir, ensinando-nos que nada é, apenas parece ser.