“Quem não está comigo, está contra mim.” Esta frase, atribuída a Cristo, quando ele falava às multidões sobre o pecado da blasfêmia, traduz uma ótica muito comum no Ocidente, e encontrou lugar cativo entre a intelectualidade brasileira, sobretudo a que surgiu com os modernistas.
Desde que o vanguardismo consolidou-se como pensamento, deu-se entre nós um campo de batalha designado pela peleja entre progressistas (os favoráveis às inovações) e conservadores (contrários às mesmas). O problema decorrente disso são as nomenclaturas sempre generalizantes, produzindo um enganoso significado, com base no perigoso discurso do “politicamente correto”, de acordo com o qual a novidade, por si só, já é um valor.
O livro Uma história da poesia brasileira, do poeta Alexei Bueno, além de prestar um grande serviço à memória nacional, insere-se decidido nesta importante discussão. E como não poderia ser diferente, seus saltos e derrapagens geraram um ruidoso debate entre personagens de nossa cultura.
Impressionismo
O trabalho de Alexei Bueno vale muito por sua dedicada pesquisa. Seja pelos nomes de autores desconhecidos, seja pelas transcrições de longos poemas e pela amostra de raras fotografias, quem nos fala é sempre um confesso apaixonado pelo tema estudado, nunca abrindo mão de ver a poesia como maneira de dignificar a existência humana.
A estrutura não acadêmica da pesquisa de Bueno também é valiosa. Deve-se ressaltar que a academia não é o vilão dos estudos intelectuais, mas acompanhando-a de perto se percebe que em muitos setores ela não aceita sair do beco em que se enfiou. Sob a justificativa do cientificismo, nega espontaneidades que arejam os estudos das disciplinas humanas. Em Uma história… as citações teóricas são esporádicas, e não existem notas de rodapé, e seu autor parte sozinho para a tarefa analítica.
No prefácio, Alexei Bueno aponta a sua subjetiva opção crítica. Com lucidez, diz ser impossível analisar qualquer obra com total impessoalidade, sem que isso se torne um ataque às teorias dos estudos estéticos. Como uma obra de arte não é uma engrenagem, ela sempre exigirá sensibilidade do espectador:
Pode haver ciência literária, sobretudo no sentido etimológico da palavra, para análises sociais da gênese dos fenômenos literários, para a fixação dos textos, para a ecdótica e a filologia. Para a apreensão estética da poesia, como obra de arte, que é o que ela é, não. Nesse ponto não há crítica que não seja impressionista.
Para anteciparmos um pouco do que diremos à frente, Alexei não raro é classificado como reacionário, visto que suas opiniões não se coadunam com a ideologia tributária das vanguardas que hoje é predominante entre artistas e críticos. Caso chegada aos ouvidos de alguém pouco íntimo do universo literário, tal classificação dá a entender que ele nega as verdades universitárias para privilegiar pensamentos já “superados”, fazendo do seu exercício reflexivo mero diletantismo. Mas acontece o oposto: Bueno, usando uma expressão de Alfredo Bosi, “reconhece o sim e o não em todas as coisas”, sem desprezar ou superestimar qualquer vertente crítica, visto que todas apresentam seus avanços e suas limitações.
Quando o autor se vale do biografismo, é para mostrar a sua adequação à análise da obra marcada pela vida do autor, e não para reduzir as realizações artísticas a simples explicações da existência dos que as criaram. Da mesma forma, o seu esteticismo não é desprovido de juízo crítico, e por isso ele vai apontar, as fraquezas e contradições do experimentalismo contemporâneo.
E assim ele ensina aos de douto saber que quando se trata dos homens, seus pensamentos e ações, é insuficiente separar o joio do trigo, importa verificar o quanto um tem do outro, identificando a medida em que ambos podem ser colhidos ou queimados:
O ponto de vista com que analisamos a poesia brasileira é estético, não sociológico ou outros, ainda que não haja obra independente de sua moldura sócio-temporal. Justamente por isso não nos furtamos a comentar fatos históricos ou biográficos de importância na gênese de poemas ou de poetas. Se há obras nas quais a biografia do autor parece, ao menos externamente, de somenos importância, em outras ela é absolutamente definidora.
Pesquisa erudita e popular
Em seus capítulos iniciais, destinados ao panorama da poesia brasileira da época colonial, Uma história da poesia brasileira ainda não dá seus grandes passos, o que não significa haver nessas páginas descuido ou desprezo pela matéria estudada.
Porém é inegável que a partir de A explosão romântica o vigor do livro fica mais facilmente perceptível, porque atestará que a literatura nacional não começou com Machado de Assis. Munido de impressionantes informações, Alexei Bueno mostra a versatilidade intelectual de Gonçalves Dias, a pluralidade estilística de Fagundes Varela, e brinda-nos com a cinematográfica história da exumação do corpo de Álvares de Azevedo, que nunca foi tuberculoso. Após uma ressaca que depredou o cemitério da Praia Vermelha, escavava-se o (destruído) túmulo do poeta para que o corpo fosse transferido. Foi então que o cão de Álvares afastou-se e, cavando a areia, encontrou os ossos de seu finado dono. O autor complementa:
Quem hoje abrir o primeiro livro de registros do cemitério de São João Batista lá encontrará, na primeira página muito gasta, o nome do poeta, o décimo segundo a ser inumado naquela necrópole.
É nesse capítulo que o livro reassume sua postura aguerrida, pois vai fazer uma crítica nada eufemística a Sousândrade (e aos irmãos Campos, que o retiraram do ostracismo). Comentando uma pequena parte de O inferno em Wall Street, Alexei Bueno chama o poeta maranhense de “autor para se fazer teses”, e percebe haver em sua obra “o divórcio absoluto entre literatura e vida”.
Nos capítulos seguintes mantém-se a empreitada para fazer justiça a autores geralmente desprezados pela crítica brasileira, sejam românticos, parnasianos, simbolistas, etc. Não que isso faça de Alexei Bueno um pirracento, contrário a tudo o que diz a academia. O autor também indicará os não poucos momentos de pobreza literária presentes em nossa tradição.
E essa valorização de poetas historiograficamente marginalizados vai ganhar mais corpo em Às vésperas da ruptura, parte do livro na qual serão lidos poemas brilhantes que terminaram ofuscados pela febre modernista de decretar a nulidade da literatura anterior a 1922. A rememoração de textos de Amadeu Amaral, José Albano e Ronald de Carvalho atinge o ápice com a citação de Argila, de Raul de Leoni.
Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila…
Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranqüila…
É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis)
Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses…
Ao tratar do modernismo, o autor destaca, entre outros elementos, a “limpeza do verso” com que o estilo-movimento contribuiu para a nossa história literária. E fugindo de previsíveis lugares-comuns (quando a fuga ocasiona resultados substanciais), ressalta os nomes de autores menos lidos, como Dante Milano, Mauro Mota e Abgar Renault. Ao falar dos canônicos, também formula juízos próprios, ao apontar Claro enigma como o maior livro de Drummond, e Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, como o melhor poema sobre a História entre todos os escritos no Brasil com tal enfoque.
Outros dois capítulos chamam a atenção: um é dedicado à tradução de poesia, no qual a figura de Augusto de Campos é exaltada sem economia de elogios, demonstrando que as críticas dirigidas à poesia concreta não partem de questões pessoais; o outro traça um painel sobre a poesia popular brasileira, em especial a dos cordelistas. Em ambos vemos o grande conhecimento que Alexei Bueno tem de nossas letras, e o respeito com que as trata, mesmo que algumas delas sejam adaptadas por profissionais mantidos nas sombras (os tradutores) ou que outras sejam divulgadas nas feiras comuns.
A polêmica
As partes mais ousadas de Uma história da poesia brasileira são Dissoluções e derivações do Modernismo e No agora e aqui pouco sabido, nos quais Alexei Bueno nega frontalmente a poesia, entre nós bastante desenvolvida a partir dos anos 50, voltada exclusivamente para si própria, limitada à experimentação da linguagem e satisfeita pela compreensão (duvidosa) de poucos, quase sempre das faculdades de letras.
Quando aborda o Concretismo, Bueno contesta o fato de o movimento ser concebido como de poesia:
Sem entrar no mérito do maior ou menor valor das realizações do Concretismo, sempre o consideramos um ramo das artes visuais, não da literatura, o que ficou cada vez mais claro com o advento da arte conceitual e a utilização de palavras nas obras de artistas plásticos.
Foi o suficiente para que uma polêmica se instaurasse, sendo veiculada pelo jornal O Globo, do Rio de Janeiro. Num comentário publicado na página virtual Obra em progresso a respeito das leituras que fazia (em fins de dezembro do ano passado), o cantor Caetano Veloso foi incisivo contra Bueno e seu livro:
No meio tempo, olho [Uma] história da poesia brasileira de Alexei Bueno. O que ele diz sobre os poetas concretos de São Paulo no paralelo que faz entre estes e os parnasianos é simplesmente abominável. Sob qualquer ponto de vista. Aliás, já na introdução, embirrei com o português desse poeta respeitado e erudito. Sei não. Parece coisa ruim.
Alexei rebateu: “crítica não se faz ‘embirrando’ com tal ou tal coisa, mas com acuidade de análise”, ainda dizendo haver entre o tropicalista e os irmãos Campos uma troca de favores em que os poetas ofereciam erudição para receber popularidade.
O paralelo aludido por Caetano refere-se ao vazio conteudístico, salientado por Bueno, existente tanto no conservadorismo parnasiano quanto nas transgressões concretistas. E sua colocação exibe um pensamento muito comum entre nossos intelectuais (mesmo no caso do genial músico baiano) segundo o qual toda crítica dirigida a uma tendência inovadora é reacionária, e quem a fez não compreende o que se propõe. Além do mais, coloca em pé de igualdade movimentos (a Tropicália e o Concretismo) cuja única semelhança reside na diretriz da renovação.
A discussão envolveu outros nomes, e Eucanaã Ferraz, organizador de livros de Caetano e autor do poema São Sebastião, utilizado no livro de Bueno como exemplo de “falácia estética de pior categoria”, parece ter tomado as críticas de forma personalista, como se a defesa da opinião do músico só se sustentasse pela diminuição da obra do poeta:
Alexei não é adversário à altura de Caetano e passa a ter uma dívida com ele, que lançou luz sobre um livro que não tem importância alguma.
Posicionamentos dessa natureza traduzem o maniqueísmo tão vivo entre nós. A nosso ver, Alexei Bueno falhou ao não citar em seu livro um único texto concretista, apesar de sua já aludida opinião de que concretismo não é poesia. Talvez isso contradiga o que ele mesmo esclareceu na introdução, quando explicava que poderia haver poesia sem qualquer elemento, menos sem palavra e sem letras. Sabemos que as experiências vanguardistas brasileiras, em sua obsessão evolutiva, culminaram no poema-processo, na poesia semiótica e no poema-montagem, todos de menor expressão. Descontados esses exemplos, existem peças — com letras e palavras —, no mínimo, dignas de nota. Mas isso não invalida o trabalho de Bueno, cujo maior mérito é defender, com coerência, o ideal em que acredita: o de que a poesia, mais do que demonstrar um complexo apanhado de teorias, pode ser, como ela é desde o seu surgimento, um gesto de amor à vida, algo bastante esquecido atualmente.