Uma receita de família

Resenha do livro "O arroz de Palma", de Francisco Azevedo
Francisco Azevedo, autor de “O arroz de Palma”
01/03/2009

Começo pela capa. Fôrma em forma de coração cheia de arroz. Trabalho harmonioso do capista Victor Burton: o coração cheio de arroz, a cor, as bordas com imagens de detalhes de renda. Esse eu compraria pela capa!

O arroz de Palma, primeiro romance do experimentado Francisco Azevedo. Dramaturgo e roteirista com mais de 250 produções escritas para várias mídias.

Vamos ao miolo. Antonio, o personagem central, o “antônimo” dos irmãos, com 88 anos (“dois infinitos verticais”), prepara almoço que irá servir para os irmãos (dois irmãos e uma irmã: “os sinônimos”) e todos os seus descendentes. É 11 de julho de 2008, data em que seus pais fariam cem anos de casamento. Antonio é de imaginação fértil. Uma imagem, um detalhe, e sua imaginação cria asas. Enquanto cozinha (é cozinheiro de profissão) o sagrado arroz de sua tia Palma, se perde em memórias. É assim que a saga da família é contada. Apartir das lembranças e devaneios do cozinheiro.

Tudo gira em torno do arroz. Uma chuva torrencial de arroz cai sobre seus pais. Isso lá em Portugal (em 11de julho de 1908). No casório dos dois. Sua tia Palma, irmã de seu pai, recolhe todo o arroz que foi jogado sobre o casal. E os presenteia. São 12 quilos de arroz. Bem recebidos pela cunhada, mas que enfurece o marido. O irmão José Custódio é orgulhoso. Acha o presente uma ofensa.

Mas o arroz é sagrado, mágico. Desafia a ciência. Não estraga. Cem anos se passam e ele continua em perfeito estado. Palma, que empresta nome ao título do romance, escreve no cartão que acompanha o presente: “Este arroz — plantado na terra, caído do céu como o maná do deserto e colhido da pedra — é símbolo de fertilidade e eterno amor. Esta é a minha bênção”.

As lembranças prosseguem. Seus pais e tia Palma migram para o Brasil, para capital federal, o Rio de Janeiro. Se encantam com as pedras portuguesas nas calçadas. Do Rio, para o interior do estado. O patriarca vai trabalhar numa fazenda de café. A vida melhora. Os anos passam e nada de filhos. Onze anos, e nada de filhos. Tia Palma, teatral e cheia de sabedoria (é bom lembrar que José Custódio sofria de prisão de ventre. O que o deixava enfezado — “Tia Palma ensina que enfezado vem de fezes”), com a cumplicidade de sua cunhada Maria Romana, coloca laxante na comida do irmão. Ele adoece. As cúmplices fazem uma sopinha com o arroz sagrado. Dito e feito. Custódio e Romana têm um filho atrás do outro: 1920, 22, 23 e 24.

Francisco Azevedo elabora no livro um curioso calendário que vai do casamento de José Custódio com Maria Romana, em Portugal, em 11 de julho de 1908 a 11 de julho de 2008, no Brasil. Um centenário exato. Tamanho apuro leva a imaginar que o livro possa ser adaptado para uma minissérie, ou até mesmo uma novela.

O livro tem humor e ensinamentos, ditados e sentenças, que dão um sabor a mais à história do arroz. O humor inteligente descontrai a narração.

Apesar de a história do arroz e as ruminações de Antônio serem o foco da história. Há também a história da geração, o passar dos anos, as mudanças do mundo. O protagonista é homem do seu tempo. Se comunica com o neto pelo msn, com webcam, usando a linguagem da net. O capítulo kd vc? reflete bem a contemporaneidade.

A primeira experiência sexual de Antonio e sua futura e eterna esposa, Isabel, no capítulo O dono do arroz, é descrita com apuro. O apuro aqui é a técnica do autor que se arma de sincronicidade e lógica; puro artifício matemático que navega com o leitor.

Por mais novelesco que o livro pareça, Francisco Azevedo estréia bem como romancista. Não deixa o arroz queimar.

O arroz de Palma
Francisco Azevedo
Record
364 págs.
Cláudio Portella

É escritor, autor de Cego Aderaldo: A vasta visão de um cantador. Tem outros 12 livros publicados.

Rascunho