Abecedário

Conto inédito de Tarisa Faccion
Ilustração: Conde Baltazar
01/06/2022

O celular tremeu avisando que faltavam dez minutos. Aumentei a música para abafar o som dos carros, das pessoas, tem escola aberta já. Saí. Se ficasse mais, a casa seria menos o mundo. E refiz o mesmo caminho, três ruas em frente, vira à direita. As orquídeas, replantadas nos troncos das amendoeiras — por quem? —, decoram a rua quase toda. Elas não são parasitas, ainda que assim possam ser confundidas, com suas entroncadas e sinuosas raízes coladas a algo maior que elas mesmas. Elas se agarram como podem, depois de auxiliadas pelos fios de metal enrolados — por quem? — para grudar seus corpos a outras estruturas. Será que esse processo é rápido? De fixadas à força a querer estar junto nessa nova realidade? Dão flor porque querem ou porque é processo irremediável da natureza? Porque estão bem nutridas ou porque é o que sabem fazer? Choveu tanto nesses últimos dias que me faz rir lembrar das dedicadas pessoas espirrando gotículas de água nas folhas das orquídeas, dia sim dia não, na esperança de que, quem sabe um dia, floresçam novamente.

Cinco anos… e se resume a isso? Conta do início. É só isso. Ela falou o que exatamente? Vai saber, a Bel me disse que ela falou que tava mal, reclamou lá da vida dela e emendou que terminamos. Sei. Quer dizer… que você terminou comigo. E quem tava lá? Quem é esse povo? Umas gurias (chatas), tô num grupo com elas, fico sem jeito de sair, mas nem participo. Foi a Bel que me colocou lá. Ah, dane-se, essas aee. E eu cato a Tina! Ah se cato! Bonito! Já não basta a gastação de DR que criamos por conta própria. Não quero ficar me repetindo. É, né? Você sabe. Hum, mas não foi isso que a Tina disse, né?

A memória muscular entrara em ação e nem vi como cheguei. Não sei se esperei o sinal fechar ou cariocamente atravessei por entre os carros. Um frio na barriga pelo provável perigo corrido e minha mão escorrega quando agarro a porta do elevador. O tempo fresco e puxo a gola da camisa para secar umas gotas de suor descidas do meu rosto, em linha reta pelo pescoço, até se acumularem dentro de mim. Mais cedo, encarei o post it no espelho e abri a nécessaire porque “preciso de um up”. Um pouco de base, não muito, não quero parecer destruída, mas também não quero fingir estar ótima. Agora no espelho desse elevador sou duas pessoas sem amarração. Está na cara que nunca aprendi mesmo a me maquiar. Devo ter comprado a base errada, a de tom rosa ao invés de laranja, que era a que combinava com a constituição da minha pele, me foi dito. A constituição da minha pele.

Uma frase continuava martelando na minha cabeça. “Qual seu plano B?”, Carola perguntara em meio a um sorriso afetuoso. Eu já conhecia essa expressão: os lábios subiam sem formar covinhas e, no meio da testa, uma quase imperceptível depressão afundava. Carola tentava disfarçar qualquer coisa que pudesse soar como cobrança ou pressão. Ela já sabia meus mecanismos. E eu já conhecia suas estratégias.

Hoje, Carola adicionou os planos C e D ao problema e eu nem tinha ainda decifrado a segunda letra, da primeira pergunta. Nos últimos tempos eu fritava na cama e a cada vez que chegava no quarto eu pedia — a quem pedir? — que despertasse com alguma solução. Não dormia e não sabia. Falta de fé? Provavelmente estava tendo pensamentos e sentimentos negativos, e afinal assim nada muda porque a pessoa deve agir como se já fosse, já existisse, e acima de tudo deve cocriar sua realidade. Rá!

A casa criou mofo por inteiro no mês passado e as roupas empacotadas da lavanderia restavam empilhadas na sala. Um arrepio atrás da cabeça. Era fantasma ou premonição ou calafrio da covid ou dengue porque é verão. O ventilador que mirava a pele de vaivém havia derrubado por definitivo o post-it. Graças! Se é para ser assombração que seja uma que nos livre de intrusões inspiradas. Aquela frase não autoajudou ninguém nessa casa.

Tarisa Faccion

Nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1982. É graduada em Cinema pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Mídias Interativas pela University of the Arts London. Publicou online os projetos literários Nas estrelas, Creatures in delight e Pontos — uma paixão em linhas. Em 2020, participou da coletânea de contos Feliz aniversário, Clarice (Autêntica). Atualmente, trabalha em seu primeiro romance.

Rascunho