Desde que a ficção brasileira atingiu a maturidade — por assim dizer —, a literatura resolveu enfrentar a realidade com Lima Barreto, a princípio, e depois com o romance de 30, deixando para trás o “sorriso da sociedade”, de que tanto se orgulhava Afrânio Peixoto, satisfeito com aqueles romances folclóricos e líricos, que se contentavam em estampar os amores caboclos e vulgares, bajulando os coronéis do mato, moçoilas ingênuas e juízes despreparados, mas esquecendo os humilhados e ofendidos, nem sequer se dando ao trabalho de examinar o sofrimento dos negros.
A literatura transforma-se numa fuga da realidade em vez de enfrentá-la como questionadora dos nossos problemas sociais.
Foi um longo percurso, necessário e urgente, mas a revolução literária viria, em princípio, com a Semana de Arte de 1922, desdobrada no Modernismo, com Mário e Oswald de Andrade, enfrentando a realidade no muque, trazendo para nossas letras o sangue e o suor dos camponeses e operários torturados pelo racismo, pelo desemprego, pela desorganização social.
Jorge Amado e Lima Barreto formam a dupla de ferro e garra que resolve questionar a realidade de um país já envolvido por um racismo violento que trata os negros como restos de feira, sem qualquer humanidade, um racismo sempre cruel.
Destaque-se, por exemplo, este episódio de Recordações do escrivão Isaías Caminha, com algo de autobiográfico:
O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não sei mesmo em que estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde havia café e bolos. Encontravam-se lá muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota a pagar. Como se demorassem em trazer-me o troco reclamei: “Oh”, fez o caixeiro indignado e em tom desabrido. “Que pressa tem você?! Aqui não se rouba fique sabendo!” Ao mesmo tempo, um rapazola alourado reclamava o dele, que lhe foi dado prazerosamente. O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes me lançaram, mais cresceu minha indignação. Curti, durante segundos, uma raiva muda, e por pouco ela não irrompeu em prantos. Trôpego e tonto, embarquei e tentei decifrar a razão da diferença dos dois tratamentos. Não atinei; em vão passei em revista a minha roupa e a minha pessoa. Os meus 19 anos eram sadios… e o meu corpo regularmente talhado. Tinha os ombros largos e os membros ágeis e elásticos. As minhas mãos fidalgas, com dedos afiados e esguios, eram herança de minha mãe, que as tinha tão valentemente bonitas quase mantiveram assim, apesar do trabalho manual a que sua condição obrigava. Mesmo de rosto, se bem que os meus traços não fossem extraordinariamente regulares, eu não era hediondo nem repugnante. Tinha-o perfeitamente oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada.
Observe-se, a um tempo, a humilhação — que tanto irritou o personagem — e o orgulho da cor, lembrando-se da mãe, que fora lavadeira, cujas mãos eram afiladas e esguias. Esta é, sem dúvida, a obra nascente da Luta Verbal, agora em plena atividade no combate às desigualdades sociais.
Sem esquecer, mas lembrando de forma veemente, a obra exemplar de Graciliano, disposto a enfrentar as agressões sociais, sem perder a força da técnica, sobretudo neste livro genial chamado Vidas secas, que, sem dúvida, revolucionou a literatura, sem a literatice dos cenários exuberantes de sol e lua se confundindo no horizonte. Um momento de grandeza só comparável a Pedro Páramo, de Juan Rulfo, no México, a As vinhas da ira, de John Steinbeck, nos Estados Unidos, e a Um coração simples, novela de Flaubert, a primeira no mundo a questionar a exploração das empregadas domésticas, trabalhando humilhadas sem qualquer direito, jamais reconhecido.
Mesmo assim, encontramos em Jorge Amado a verdadeira Luta Verbal, na cena de ângulo aberto do começo de Suor:
Os ratos passaram, sem nenhum sinal de medo, entre os homens que estavam parados ao pé da escada escura. Era escura assim de dia e de noite e subia pelo prédio como um cipó que crescesse no interior do tronco de uma árvore. Havia um cheiro de defunto, um cheiro de roupa suja, que os homens não sentiam. Também não ligavam aos ratos que subiam e desciam, apostando carreira, desaparecendo na escuridão.
Em artigo sobre Suor, Graciliano Ramos diz que “um sopro de poesia varre todas as imundícies, perfuma esse monturo social”. Foi por esta razão, ainda, que a crítica conservadora brasileira rotulou a obra de Jorge Amado de panfletária. Tudo porque ele não repetiu aquele mundo lírico de Cabocla, de Ribeiro Couto, nem fez a luta verbal naufragar em coisas como Cazuza, de Viriato Correia, chato e vulgar; alguma coisa de inútil e balofo.
Ao lado deste universo amadiano, João Cabral de Melo Neto examina, com a faca nos dentes, o mundo cruel dos retirantes nordestinos em Morte e vida Severina. Desaparece aí o mundo idílico da primeira fase da literatura brasileira. Sem esquecer, é claro, do poema Uma faca só lâmina, que desafia a realidade e corta, lâmina afiada, a gordura do romantismo e do folclorismo azedo.
Vamos firme, vamos com a Luta Verbal.