Nódoa no brim

A pouca atenção, quase desprezo, dos prêmios literários a obras experimentais
Ilustração: Marcelo Frazão
01/06/2022

Há muitos anos venho pensando sobre prêmios literários. Trata-se de uma instituição importante, que vasculha a literatura nacional de ponta a ponta, cobrindo territórios, classes sociais, editoras de todos os tipos, gêneros narrativos diferentes e desenhando, com isso, uma amostragem única da produção literária nacional.

Os prêmios são, talvez, uma das únicas formas de reconhecimento para escritores ainda desconhecidos e com poucas chances de receber cobertura da imprensa. Há os prêmios de maior alcance e recompensa monetária, os de grande alcance e pouca recompensa e os de pouco alcance e recompensa, mas, de qualquer forma, é sempre bom ser escolhido entre um número considerável de participantes, desde que o júri seja reconhecidamente sério. Há os prêmios com pseudônimo ou com nomes declarados; os prêmios com jurados coletivos e individuais; com processos mais diretos ou indiretos; prêmios em que o gênero narrativo é indiferente e outros em que tudo se classifica. Mas não é esse meu ponto.

O que me motiva a escrever é algo que, pelo que tenho acompanhado, me causa certa indignação. Penso que os prêmios são uma das únicas formas de obras mais experimentais ou fora dos padrões convencionais receberem alguma atenção. As editoras e livrarias, como se sabe, estão cada vez mais restritas à publicação e venda de livros que já vendem ou que têm chance de vender, ou seja: livros cuja temática se encaixa na demanda do público leitor e cujo tratamento de linguagem e estrutura igualmente não foge aos conhecidos recursos de linearidade, cronologia e foco narrativo único. Claro que há exceções, mas são poucas.

Acontece que, há mais de um século, a literatura vem experimentando formas expressivas e temáticas que fogem ao senso comum e isso pelas razões mais diversas: questionamento do papel da representação ilusionista; não conformação à linearidade temporal, pela constatação da multiplicidade de tempos que coexistem na mente e no discurso; multiplicidade de focos narrativos, numa atitude quase cubista de simultaneidade de vozes; uso da metalinguagem como forma de colocar em xeque o lugar passivo do leitor e da própria narração; invenção de palavras, variações linguísticas e gramaticais, numa tentativa de se aproximar de personagens mais comuns e autênticos; neologismos e construções gramaticais que questionam significados e significantes cristalizados e tornados lugares-comuns; frases longas ou períodos longos sem pontuação, que buscam emular o fluxo do pensamento; variações nas formas dos diálogos, emulando interrupções, emparedamento, silêncios e vazios e inúmeros outros recursos que, se dificultam o fluxo da leitura, exigem do leitor reflexão sobre a própria língua, sobre o papel da representação e do seu próprio lugar como participante da obra.

Se a história em seus moldes clássicos nos pega pela mão e nos leva a um universo outro, onde o leitor pode assistir de forma passiva ao que se passa, a história fora desses moldes solta essa mão e pede ao leitor que, junto com o texto, crie e pense sobre seus caminhos. É mais difícil e cansativo, mas, por outro lado, pode gerar mais autonomia, espírito crítico em relação à linguagem e ao espírito da época e diversificar as possibilidades de leitura.

Acontece que os prêmios não parecem prestar muita atenção a essas narrativas. Pelo que tenho acompanhado, nos últimos anos, poucos livros experimentais têm sido premiados. Não quero citar os nomes de algumas obras que me vêm à mente, com receio de que os autores não aprovem esse uso, nesse momento. Mas lembro de vários livros que mal foram selecionados como semifinalistas dos principais prêmios literários vigentes no país e isso me entristece. Os prêmios deveriam ser, justamente, uma forma de revelar e valorizar essa produção, já que o mercado as rejeita.

Se os prêmios passarem a reproduzir a voz invisível da tradição, como avançar nos termos do que diz o já antigo poema Nova poética, de Manuel Bandeira?

O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

Rascunho