A mais antiga das epopeias

Selvagerias de um rei tirano marcam a "Epopeia de Gilgámesh", uma narrativa sumérica que surgiu antes dos clássicos de Homero
Jacyntho Lins Brandão, tradutor de Epopeia de Gilgámesh
01/06/2022

Das formas literárias fundamentais, a narrativa épica, ou epopeia, tem seu lugar de destaque, muito embora seja um gênero literário extinto na história da literatura mundial.

Substituída pelo romance em suas mais variadas formas já num contexto de sociedade burguesa, a narrativa épica outrora se prestava ao relato de feitos heroicos de um povo, seja no confronto com outro povo (Íliada, Jerusalém libertada, Orlando furioso), seja nas peripécias de um herói em específico que corporificava os valores culturais desse povo, e então o que impera é a exaltação de seus feitos (Odisseia, Beowulf, Eneida).

Nisso, talvez a epopeia se distinga dos demais gêneros literários antigos na descrição e fixação dos costumes de uma época, e sua cultura. A título de exemplo, basta lembrar que no âmbito dos estudos históricos, mais especificamente dentro do período da Antiguidade Clássica, tem-se, do período do século 12 a 8 antes de Cristo, a designação Tempos Homéricos a uma época cujo conhecimento é possível pelas duas obras do grande poeta lendário, Íliada e a Odisseia.

As citadas obras, aliás, estão entre as mais influentes dentro da tradição literária. Não se limitaram a captar uma época e sua cultura: ditaram também os rumos estéticos do quanto se fez para além de seu tempo. Caso diverso é o que ocorre com a Epopeia de Gilgámesh, narrativa suméria que antecede em mais ou menos 1500 anos os poemas homéricos, e que a editora Autêntica relança com um projeto caprichado, numa versão menos acadêmica que a primeira, de 2017.

É esse o texto literário mais antigo que chegou até nós, o que torna sua leitura essencial ao amante da literatura e estudioso de sua história.

“Aquele que o abismo viu”
Gilgámesh é uma epopeia ao mesmo tempo distinta e semelhante às que a sucederam na literatura do ocidente. De início, chama a atenção a breve extensão da narrativa, contada em 11 tabuinhas que registram os feitos do semideus mesopotâmico (há uma 12º que foi excluída da edição, por ser basicamente uma retomada resumida das demais).

De início, o leitor é apresentado a este “que o abismo viu” e que conheceu “o fundamento da terra”. Descrito pelo aedo que nos transmite o mito como “sábio em tudo”, não tarda para que o leitor forme um juízo bastante distinto de Gilgámesh: o de um rei tirano, arbitrário em sua selvageria, que “assedia os jovens de Úruk” — cidade em que reina — “sem razão”.

Ouvindo as queixas das mães de Úruk, os deuses encarregam Arúru, a mãe deles, de tomar uma atitude, o que esta o faz: numa estepe, concebe, através do barro, o guerreiro Enkídu, quase uma fera antropomorfizada como Gilgámesh, a fim de rivalizar com sua força e hegemonia.

A esse respeito, é interessante observar como é distinta a caracterização de tais figuras heroicas se comparadas aos guerreiros gregos épicos:

Na estepe a Enkídu ela criou, o guerreiro (…)
Pelos sem corte por todo o corpo,
Cabelos arrumados como de mulher (…) 

Não conhece ele gente nem pátria,
Pelado em pelo como Shákkan,
Com as gazelas ele come grama,
Com o rebanho na cacimba se aperta,
Com os animais a água lhe alegra o coração

Contudo, em uma das muitas expectativas frustradas que o leitor experimentará no decorrer do poema, não será Enkídu o brioso rival que se confrontará com Gilgámesh, pondo fim às suas arbitrariedades. Antes com ele se unirá num laço fraterno que, depreende-se (pois o poema não é específico a esse respeito, como a tantos outros, aliás), acalmará os impulsos selvagens do rei de Úruk.

Talvez, nesse sentido, o próprio primeiro encontro de ambos carregue algum simbolismo: Enkídu impede a passagem do rei quando este se dispõe a cumprir seu ritual tirânico de desfrutar de certa esposa, antes do noivo, numa boda em Úruk.

Após o embate entre os dois, Nínsun, a deusa mãe de Gilgámesh, revela ser aquele o ser que aparecia nos sonhos do filho, criação bastardeada dos deuses. Isso aparentemente provoca lágrimas no forte guerreiro a quem Gilgámesh, para consolar, propõe uma expedição arriscada para que ambos deem cabo do “Huwawa belicoso”, fera que habita a distante Floresta de Cedros.

Embora muito hesitoso, Enkídu acaba partindo com Gilgámesh. Depois de longa viagem, ambos se defrontam com a fera, abatendo-a. A façanha desperta o desejo da lasciva e volúvel deusa Ishtar, que propõe unir-se a Gilgámesh, mas acaba sendo por este rejeitada, receoso em ter o mesmo destino que os demais esposos da deusa.

Irada, ela apela a seu pai Ánu e aos demais deuses que lhe concedam o Touro do Céu para vingar-se do rei de Úruk. Este, na companhia de Enkídu, dá fim à ameaça, e é celebrado em sua cidade, enquanto Enkídu tem sonhos premonitórios.

Pela afronta ao touro, no conselho dos deuses, Ánu pede a cabeça de um dos dois amigos; Énlil, outra divindade, intercede por Gilgámesh, selando assim o destino de Enkídu. Isso acaba também selando o destino de Gilgámesh, que decide viajar, de forma um tanto arbitrária, ainda enlutado, à procura de Uta-napíshti, um ser que sobreviveu ao dilúvio e que, outrora homem, foi deificado pelos deuses. A intenção do rei de Úruk, “dois terços um deus, um terço humano”, parece ser a de se furtar à condição mortal para a qual a morte de Enkídu parece e o ter despertado:

Estejam tuas vestes limpas,
A cabeça lavada, com água estejas banhado:
Repara na criança que segura tua mão,
Uma esposa alegre-se sempre em teu regaço:
Esse o fado da humanidade

Porém Gilgámesh voltará de sua viagem não de todo satisfeito. Por vezes, o Fado age sobre os seres enobrecidos com a impassibilidade debochada de um comediante…

Estética da obra
O leitor que se aventurar por esses versos terá um caminho um tanto acidentado a percorrer, e não por um presumível hermetismo: a epopeia é de acessível leitura, e a tradução de Jacyntho Lins Brandão, além de suas notas explicativas, facilitam mais o processo.

A grande questão é que a obra chegou a nossos dias mutilada, com trechos em que abundam as reticências, deixando para o leitor a tarefa de preencher as lacunas.

Os versos, de extensão média, são normalmente distribuídos em quartetos. Chama a atenção neles uma eventual repetição, característica dos textos bíblicos mais antigos, que é em tudo distinto dos versos gregos ulteriores. A título de exemplo, a tabuinha 4, composta pouco mais de duzentos versos, apresenta pouco mais de um quarto de versos variados.

Por falar em bíblico, o leitor que estiver familiarizado com A cicatriz de Ulisses, ensaio de Eric Auerbach no livro Mímesis, poderá ter uma estranha impressão de que Gilgámesh trafega entre o descritivismo detalhado e caracteres planos do verso homérico, de um lado, e a elipse narrativa e obscura camada interior de personagens do verso bíblico, do outro (vertentes opostas no ensaio).

A título de exemplo, observe-se o início do poema em questão onde abundam epítetos a Gilgámesh e às divindades, nada devendo a Homero. Por outro lado, note-se como o poema é elíptico nas descrições contextuais dos fatos, como no final da mesma tabuinha, quando conta-se do diálogo entre Gilgámesh e sua mãe após o sonho daquele; sem muitos detalhes do contexto e sem qualquer transição, a interpretação que ela dá a seus sonhos é contada a Enkídu por Shámhat, a prostitua sua amante. Como ela soube? Qual a localização em que se dá os dois diálogos, e como foi possível um ter ciência do outro? O leitor não terá essas respostas.

Por tais e outras questões, ele terá nessa epopeia uma leitura intrigante, num projeto editorial digno.

Epopeia de Gilgámesh
(Autoria atribuída a Sin-Iéqi-unnínni)
Trad.: Jacyntho Lins Brandão
Autêntica
162 págs.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

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