Dezenas de casinhas, artisticamente tratadas e repletas de livros, como santuários laicos acessíveis a todos, espalham-se na cidade paulista de Piracaia, no projeto Piracaia na leitura, conduzido pela incrível Amanda Leal de Oliveira, coordenadora do projeto de formação de leitores. Em outro canto do planeta, em uma das cidades que formam parte da elite de comando do mundo, Washington D. C., e em suas cidades vizinhas, caminho por várias ruas que ostentam também pequenas casinhas, menores que as de Piracaia, mas que também trazem livros para serem colhidos por quem queira ler.
As minibibliotecas se espalham por vários países e continentes nas suas variadas formas. Muitas transformam utensílios domésticos em vitrines dos livros a serem colhidos, como as geladeiras inutilizadas que têm várias denominações como Geladeira literária, Biblioteca livre e passam a ornamentar pontos públicos em várias cidades brasileiras, todas lotadas de livros que almejam alcançar outras mãos. Das casinhas artísticas de Piracaia, às geladeiras e aos livros “esquecidos” em bancos de jardim, em assentos de ônibus e metrô ou em estantes improvisadas em pontos de ônibus, muitos voluntários e mesmo alguns programas públicos fomentam a leitura por essa via inusual de levar a biblioteca às ruas em várias partes do globo.
Entusiasta dessas ações, pensei nelas quando visitei recentemente a referencial Biblioteca do Congresso Norte-Americano, considerada a maior do mundo em espaço físico e em quantidade de obras no acervo: 155 milhões de exemplares em mais de 400 diferentes idiomas. Mais uma vez, ao visitar uma biblioteca icônica, assim como aconteceu quando visitei a Biblioteca Britânica ou as sedes da Biblioteca Nacional da Alemanha e a nossa Biblioteca Nacional, meu pensamento transcendeu o lindo e luxuoso edifício e suas inscrições instigantes que remetem à inteligência humana, aos valores humanísticos e ao seu magnífico catálogo universal.
Em todas essas iniciativas de acesso ao livro e à leitura, da casinha de livros de Piracaia ou Washington à maior biblioteca do planeta, persiste a ideia do compartilhamento público do livro em todas as suas dimensões editoriais, literárias, científicas ou artísticas. Visito todas essas iniciativas, acumulando-as na memória e nos sentimentos, como reconhecimento do gigantesco esforço de uma pequena parcela da humanidade que persiste na busca e no compartilhamento do conhecimento ficcional e não ficcional como algo intrínseco e necessário ao desenvolvimento pleno de nossa espécie.
Este elogio às bibliotecas de acesso público — como as denominamos no agora maltratado Plano Nacional do Livro e Leitura do Brasil (PNLL) e na Lei 13.696/2018, ainda não implantada, que estabelece a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE) — é também um alerta e um norte que deveriam fazer parte de todos os planejamentos de programas públicos e privados de formação de leitores. A história criou e segue criando uma ferramenta de acesso às leituras que continua imprescindível: as bibliotecas. E é sobre elas que devemos, enquanto política pública, centrarmos todos os esforços de desenvolvimento para formar leitores, tanto na cultura quanto na educação.
A este instrumento secular, a tecnologia contemporânea, a da “textualidade eletrônica”, utilizando a expressão de Roger Chartier, contribui de forma ímpar ao oferecer também as bibliotecas digitais que chegam a oferecer, na virtualidade, os serviços de uma biblioteca presencial. O desafio do compartilhamento, do acesso público, se mantém com plataformas inovadoras que podem e devem conviver harmoniosamente e integradamente com as tradicionais e renovadas bibliotecas seculares construídas pela humanidade ao longo da História.
Nesses espaços físicos e virtuais, sedes e disseminadores de saber literário e científico, deve-se também praticar ininterruptamente a inovação, a atualização de conceitos sobre seu lugar e papel na sociedade. Manifestos e estudos dos órgãos mundiais das bibliotecas, a começar pela Ifla (Federação Internacional de Associações e Instituições de Bibliotecas), debatem e publicam constantemente em seus estudos e manifestos essas atualizações. Mudanças de constituição e organização de acervos, olhos especiais para a acessibilidade e às novas tecnologias, papel mediador dos profissionais bibliotecários, espaço físico das bibliotecas como dínamos culturais e formadores do seu entorno social, entre vários outros temas, estão presentes e enfatizados nas manifestações da Ifla e das entidades progressistas das bibliotecas em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.
Essa mudança de conceito e do fazer bibliotecário é sentida quando adentramos em uma biblioteca que compreende e pratica essa contemporaneidade que no PNLL se denominou “biblioteca viva”: a sensação do acolhimento e pertencimento. Assim me senti na exuberante Biblioteca do Congresso Norte-Americano e ao abrir a portinhola envidraçada das casinhas bibliotecas, ao adentrar as inúmeras bibliotecas comunitárias que conheci no Brasil ou as bibliotecas parque da Colômbia e de São Paulo e Rio de Janeiro, ou a Biblioteca Santiago em Santiago do Chile. Ou ainda, as muitas bibliotecas escolares, algumas camufladas como “salas de leitura”, em inúmeras escolas que visitei quando da implantação do PNLL. Os exemplos da minha memória são muitos, porque muitas foram as visitas e os testemunhos que acumulei deste trabalho imprescindível das multidiversas bibliotecas.
Em todas elas há algo que transcende os seus contornos físicos, características dos projetos e práticas de compartilhamento de leituras: são as pessoas que criam, desenvolvem e dão sustentabilidade a esses espaços. Se uma biblioteca viva, inclusiva, democrática e aberta à comunidade exerce este papel é porque faz parte de uma política que respeita o público enquanto expressão do coletivo, sustentado por pessoas que assumem esta tarefa cidadã e republicana. Não foi por acaso, mas fruto de contundente constatação da realidade, que o eixo 2 do PNLL estabelece a formação de mediadores de leitura. No seu sentido amplo e profissional, os mediadores mais permanentes são os profissionais bibliotecários e os professores, embora a mediação possa ser exercida, e assim demonstra o mundo real, por inúmeras e variáveis pessoas e profissionais.
É preciso que neste momento em que o Brasil, temeroso e farto de tanta barbárie regressiva do governo atual, que nos ameaça com suas ações antidemocráticas e antirrepublicanas clamando pela ditadura, também se concentre no que é preciso para se opor de maneira permanente a essas tentativas de regressão à violência que impede a convivência pacífica do país.
É responsabilidade dos já delineados candidatos de outubro do campo democrático na construção dos seus programas de governo, nos níveis federal e estaduais, incluir com a devida ênfase e prioridade, o cumprimento da legislação já existente da PNLE (lei 13.696/2018) e, como ação prioritária, a injeção de recursos substantivos a partir de um novo Plano Nacional do Livro e Leitura que tenha como meta principal do próximo decênio a universalização de bibliotecas vivas nos municípios e nas escolas do Brasil.
Seguimos sendo um país com grandes dificuldades econômicas para a absoluta maioria de sua população. Embora seja necessário e saudável o desenvolvimento e apoio à aquisição individual de livros por intermédio de livrarias, a democratização do acesso à maioria do povo brasileiro somente será possível pela ação de bibliotecas físicas e virtuais alinhadas com os valores e objetivos da contemporaneidade que persistem na busca de uma sociedade mais justa e igualitária.
Que este momento de grande angústia política, em que questionamos nossas possibilidades em nos tornarmos um país alinhado às conquistas da civilização, seja também o momento no qual compreendamos o papel estratégico da formação de leitores para que essa “utopia” seja uma realidade em futuro próximo.