Descabeladas
Beijarás o coração da pedra escura
No torso de uma noite sem tamanho
O estouro de uma tropa alada sentirás
No vento tonto a fabricar a chuva
A febre da pedra na pele de uma planta
Antiga noite, antiga noite
Macerada entre teus dentes
Nossos bichos, nossos
Ensaio de uma serenata pra ninguém
som que a ventania roubou pra si
essa senhora dona do que não tenho
eu canto antes de cantar o primeiro sabiá
e me calo quando piam
as corujas lá no mato
…
Ancestras
Herdei em vida saber
o nome de muita flor
Quase nada eu sei
em saber o nome
d’açucena
das maria-mole
e das sem vergonha
Me dá a tua mão
aberta eu tenho um ofício
não há mão que minta
Dame la mano, chica
Dame tu mano livro de contar
histórias de debulhar os dias
um a um os cheiros de toda
água toda
erva
Tens qualquer susto
pra chamar de sonho e
choras
a sedução dos abismos
Não há mão que minta
a sorte a sanha da carne
viva
…
do mel às cinzas
o mel aflora o gosto
às condições do tempo
em que ficou guardado
as pétalas da camélia
pegando o fogo
do sol nunca escondem
as vergonhas de mim
tem gente morrendo
na televisão tem
gente chorando na fila
do supermercado
tem gente procurando
poesia pra não deixar
barato
…
Lugar nenhum
tenho a cara de lugar nenhum
abrigo um deus em meus espantos
e venho tendo
quando muito
a sorte de adormecer
eu sei do fruto pela flor
e furto do escuro a cor
do verso
maduro
caído da imensidão
se sou moço quando erro
de acertar não envelheço
quanto tempo vive um sonho?