Visão
Quando olho da terra
o mar a perder de vista,
percebes o meu corpo arborescente?
O que arde sob meus pés
e já não tem mais importância?
…
O que aprendemos desde nossas mortes
sentir o vento baloiçar os sonhos
sem entornar a esperança;
ouvir a música de um céu azul de outono
ou a pulsação de uma noite escura.
meter o mar por dentro dos olhos
até aos pés, afogando-se na teia da espuma toda
— enquanto o amor levanta-se do sítio mais fundo
a respirar boca a boca o beijo, à saciedade.
arrebatar o coração aos despenhadeiros,
morrer somente pelas beiradas,
preservando o cerne: regenerar-se.
as asas primeiro.
…
Amanhã
As sirenes de um ataque aéreo
já não anunciam bombardeios,
mas pássaros a despejar flores
sobre a última paisagem.
Do túmulo do soldado desconhecido,
o silêncio fendido se recompõe,
por dentro e por fora,
e é inteiro um bater de asas.
…
Naufrágio
Lançar-se num barco de papel à procura
de um mar sem ondas, à maneira de Torga,
e do que se perdeu na seara dos sonhos
dentro do ar que todo o amor circunda.
Inspirar profundo o silêncio,
enquanto a tarde aderna,
como se ouvisse o som nítido e inigualável
do horizonte a solapar os olhos até a água,
sumidouro de todos os pássaros.
Depois, quase sobreviver ao naufrágio
como o amor desentranhado do mar
onda a onda até à espuma.
…
Quero
A chuva descendo pela calha
até ao quintal da infância;
as cigarras matraqueando ao fim da tarde;
o galo arrufado a afastar os maus sonhos;
a galinha ao molho pardo
como açúcar talhado na garganta;
o sentido anti-horário dos dias
— a eternidade pretérita onde pulsa a vida —.
A morte num assomo, implacável e luminosa:
quero tudo, menos a deslembrança.