Ao mesmo tempo é o título do último discurso que dá origem a esta coletânea homônima de ensaios de Susan Sontag, nos últimos anos de sua vida. Ainda que, especificamente, tenha sido proferido como homenagem à escritora sul-africana Nadine Gordimer, ele parece resumir uma preocupação recorrente: tratar de literatura e arte, ao longo de dezesseis textos, sob um prisma ético e estético.
Trata-se, portanto, de uma obra que deixa transparecer, em reflexões ricamente diversas, um desejo de enfatizar a simultaneidade, a fim de que as forças de tensão que orientam a crítica evitem pender para um dos lados do problema, seja deturpando o literário como causa que precisa servir a determinados fins, seja incorrendo na aridez estéril da arte que só se nutre de si mesma.
Pode soar um tanto quanto estranho, em se tratando de uma escritora muito mais conhecida por suas façanhas de engajamento político, dissidente tarimbada, cuja posição acirrada contra a invasão do Iraque lhe valeu a impopularidade em seu próprio país, buscar o equilíbrio necessário entre o comprometimento do escritor, enquanto ser no mundo e a autonomia da obra literária, enquanto objeto estético. Mas é exatamente ao revelar, de modo erudito e consciente, essas duas faces complementares da mesma moeda, que Susan Sontag, neste livro derradeiro, demonstra o brilhantismo de suas análises e faz cair por terra o que, de modo distorcido, fez com que fosse lida, por muitos, apenas sob a ótica de seu posicionamento ideológico.
Ao mesmo tempo, não muito diversamente de Questão de ênfase, é prolífero quanto à variedade de assuntos. Nele, porém, o leque de situações se amplia, muito além do literário propriamente dito. Aborda temas, os mais diversos, tratando das discussões em torno do conceito de beleza; da análise de romances, casos particulares, que ensejam profundas reflexões de estética e teoria da ficção; dos sentidos do 11 de Setembro de 2001 e seus desdobramentos; passa pelo significado da fotografia da tortura (Diante da dor dos outros); aprofunda os sentidos de literatura, escritor e leitor; problematiza debates em torno do conceito de tradução literária e finaliza, enfatizando a responsabilidade do escritor com a literatura e com a sociedade, em justo equilíbrio.
Essa avidez de conhecimento, aliada ao entusiasmo por tudo que lhe despertasse o interesse, acertadamente, fez com que seu filho David Rieff a definisse, nas páginas introdutórias deste volume, como alguém dotada de uma espécie de “devocionismo”, de quem “se avantajava na admiração”.
Assombrada pela beleza
A febre de idéias, o deslumbramento que queima nos que trazem um eterno ponto de interrogação na alma, é o que nutre, vigorosamente, a produção ensaística de Susan Sontag. Melhor dizendo, a partir de suas próprias palavras: “A capacidade de ser assombrado pela beleza é espantosamente tenaz e sobrevive em meio às mais berrantes distrações…”
Talvez, aqui, resida um dos traços diferenciais que contribuíram para que ela se tornasse uma exímia ensaísta. É, de fato, no ensaio que sua obra se mostra mais contundente.
Ao longo de trinta anos de carreira, num vasto percurso que inclui a crítica literária, a dramaturgia, romances como O amante do vulcão, Na América, A doença como metáfora, foi, por meio desse exercício disciplinado do olhar deslumbrado e inquieto, capaz de flagrar uma inesgotável pluralidade de motivos, que ela nos deixou seu mais significativo legado.
Desse modo, refinou a essência do que ensinava o precursor do gênero Montaigne, em seus Ensaios, verdadeiro mosaico capaz de traduzir, numa linguagem prazerosa e informal, o homem como tema inesgotável, “maravilhosamente vão, diverso e mutável”.
O desafio de enfrentar essa diversidade de tópicos, em áreas difíceis de circunscrever, aproxima a autora do eminente filósofo francês, que abordou desde assuntos filosóficos (a natureza, Deus, a moral, a morte) até temas domésticos (costumes, doenças, apetites, amizade, leituras, etc.).
E, mesmo guardando as devidas distâncias necessárias entre os dois autores, percebemos um outro traço comum, bastante relevante: o do reconhecimento da alteridade.
Em Montaigne, esse fato revela, conforme propõe Marcelo Coelho em Folha explica Montaigne, uma ausência de preconceitos que constitui um marco decisivo na história do pensamento europeu.
Ora, o timbre do antipreconceito é, também, altissonante em Susan Sontag.
Manifesta-se, por exemplo, na escolha dos casos literários que elege como ponto de partida para suas análises. Seleciona autores muito pouco conhecidos ou estereotipados, em decorrência das classificações rígidas da crítica convencional.
Teremos, assim, no capítulo dedicado à obra Artemisia, da escritora italiana Anna Banti, cuja protagonista é a pintora italiana Artemisia Gentileschi do século 17, uma proposta radical de revisão dos conceitos de romance histórico, nos moldes propostos por tendências redutoras, que traduzem obras desse tipo com o rótulo de “ficção histórica”. Para Susan:
tal como Orlando, as categorias convencionais — romance histórico, romance biográfico, biografia ficcionalizada — não fazem jus ao romance Artemisia. Entre seus muitos prazeres, ele oferece uma reflexão voluntariosa, comovente, sobre as pretensões da literatura imaginativa, ao mesmo tempo em que celebra a plenitude da imaginação que se realiza por meio da pintura.
Continua buscando reverter os dogmas ditados pelos veredictos canônicos, ao tratar do caso Victor Serge, autor de O caso do camarada Tulaiev, advogando a causa de certos romances, vitimados pelo descaso e esquecimento.
Vai, ainda, adiante, quando se detém no escritor Halldór Laxness, especificamente ao analisar, em detalhes, o romance Embaixo da geleira, classificando-o como um livro que não cabe nos rótulos especiais que, em geral, o convencionalismo determina quais sejam: ficção científica ou fábula, alegoria, conto maravilhoso ou romance filosófico ou romance de sonho ou romance visionário ou literatura de fantasia ou literatura de sabedoria ou paródia ou estimulante sexual. Para ela, diversamente do que a tradição postula, este poderia ser tratado como um romance atípico, já que capaz de ser enquadrado em todas aquelas especificações.
Inclassificáveis
Na análise minuciosa de cada um desses casos literários, lançando luz a autores pouco valorizados, não compreendidos ou aprisionados nas armadilhas do esquematismo fácil e confortável das classificações sectárias, Susan Sontag instaura a preferência pelos “inclassificáveis”.
A importância dessa preferência está no cerne de sua produção ensaística. Ao eleger o que escapa à taxonomia, convida o leitor a dividir com o crítico o que de melhor pode ocorrer em termos de revitalização dos estudos literários: arejar os quartos fechados do comodismo em que não entra luz.
E, quando procura desvendar o processo da globalização como discriminatório, beneficiando os povos de maneira desigual, observa o quanto isso se refletiu na questão lingüística e literária, já que algumas línguas e suas respectivas literaturas acabaram sendo consideradas mais importantes do que outras. O exemplo muito pertinente, escolhido pela autora para ilustrar o preconceito, nesse caso, aponta aos nossos brasileiros Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e O cortiço como sendo três dos melhores romances de fins de século 19, que só teriam se tornado famosos, no contexto das grande obras-primas mundiais, se não tivessem sido escritos em português, mas, sim, em inglês, alemão, francês ou russo.
Diante desse conjunto de idéias inconformistas coincidem, ao mesmo tempo, a postura ética anti-reacionária da pensadora combativa e aquela estética de se debruçar diante do que cada uma dessas obras oferece de propriamente literário, para além dos mais arbitrários rótulos que se lhes impõem.
Trata-se, enfim, de dinamizar o que parece estagnado, adotando sempre o espírito atento à releitura, para que se abram possibilidades de revisar conceitos e fórmulas preestabelecidas.
É então que se insinua outro dos muitos nomes possíveis, adjetivando a postura de Susan Sontag como a de “leitora militante”. Partindo sempre do pressuposto de que toda obra só se completa com a interferência ativa do leitor, a teoria da escritura implica necessariamente uma teoria da leitura. Numa verdadeira ode ao ato de ler, representa um desses autores que concebem a leitura como salvação aos aprisionamentos da frivolidade, do mau gosto e da educação vazia:
Um escritor é, antes de tudo, um leitor […] É pela leitura, mesmo antes de escrever, que me torno parte da comunidade — a comunidade da literatura — que inclui mais escritores mortos do que vivos.
O que nos fica da atitude combativa desta pensadora é um incansável questionamento acerca das verdades forjadas e canônicas, seja as das farsas políticas à la George Bush, ou as das máscaras sinistras da tortura de Guantânamo, ou as das que engessam a arte na imotilidade dos rótulos superficiais.
O livro com que conclui uma existência ávida por mudanças em prol dos desfavorecidos e injustiçados de toda ordem, primando pela exemplaridade de seus ensaios, reconcilia os dois pólos de sua atitude crítica: o do compromisso e o da arte.
Na árdua tarefa que cabe ao escritor, como ideal a ser perseguido por Susan Sontag, está a ânsia por desvendar o que há para além dos fatos e dos estereótipos. Nas palavras da autora, é urgente que sejamos assombrados por “algo mais”, a fim de que não nos conformemos com a primeira leitura que nos oferecem do mundo, mas com outra, em cuja base resida a negação ferrenha aos preconceitos.