Portugal chega às livrarias brasileiras com muita timidez. Prêmios norteiam a escolha das publicações e, apesar de reconhecerem muitas vezes com justeza as boas obras, são um recorte bastante pequeno do que se pode chamar literatura em Portugal, a mais recente. É que, se temos lido bem editadas as obras de José Saramago e António Lobo Antunes, o mesmo não se pode dizer de Maria Gabriela Llansol, Vergílio Ferreira, Augusto Abelaira ou Maria Velho da Costa, para ficar em quatro nomes, nem me atrevo a referir ao número de poetas que, menos lidos que os prosadores e, portanto, menos visados pelo mercado, estão a uma distância oceânica das mãos e dos olhos dos leitores brasileiros (lembre-se Carlos de Oliveira, Mário Cesariny ou Ruy Belo). Editados alguns são, em antologias ou em seus romances mais reconhecidos (e algumas raras pequenas editoras fazem excelente trabalho nesse sentido); apenas não pode passar despercebida a nota de estranheza que é manter uma distância de oceano para uma literatura de mesma língua. Dizendo melhor, este exílio editorial deixa a pensar qual memória ou idéia de Brasil resiste à idéia de uma literatura fundada tanto pela língua portuguesa quanto pela nação brasileira.
Por isso é de se ler com grande alegria o romance de valter hugo mãe que, a cinco anos de sua primeira edição lá, pousa cá festejado como um importante lançamento deste ano de 2011: o remorso de baltazar serapião. Vencedor em 2007 do Prêmio Literário José Saramago, concedido bianualmente pela Fundação José Saramago a um livro em prosa de autor jovem de língua portuguesa, a alegria de lê-lo está, sobretudo, em aliar a clareza narrativa à lúdica invenção estilística e a um posicionamento singular na literatura contemporânea. Sejamos mais claros.
Logo chama atenção, por ser uma marca visual, o modo com que valter hugo mãe grafa em minúsculas toda a sua literatura, incluindo prosa e poesia, nomes comuns e próprios, inclusive o seu mesmo. Esta marca não só não é gratuita, como também vem acompanhada da supressão de quaisquer outros sinais gráficos que não as 23 letras do alfabeto (não há k, w ou y), o ponto e a vírgula: não há algarismos, estrangeirismos, dois-pontos, aspas, pontos de exclamação ou os demais sinais de pontuação. À exceção do uso sistemático das minúsculas, com implicações por demais evidentes ao representar personagens tão sujeitados a opressões de diversos tipos, os outros aspectos também estão presentes no estilo de José Saramago, sendo responsáveis, por exemplo, pelos longos diálogos sem travessão, com as falas dos personagens em um mesmo parágrafo separadas apenas por vírgulas, que marcam as páginas do escritor. Nos dois casos, o de Saramago e o de hugo mãe, diminuem-se os recursos de que se dispõe para, daí, experimentar a linguagem encenando uma situação de precariedade lingüística própria dos momentos históricos iniciais da língua portuguesa, em que de fato diversos sinais gráficos ainda não haviam se constituído. Daí o reconhecimento que o livro do novo autor recebeu do próprio Saramago, que comentou a impressão que certas passagens do livro produziam: “um novo parto da língua portuguesa”. Ao suprimir sistematicamente o uso da caixa alta, hugo mãe reduz ainda mais os recursos gráficos disponíveis e de quebra inclui sua própria assinatura nesta situação, lendo-se como produção da obra.
O aspecto gráfico, de influência reconhecida, é apenas um dos elementos configuradores do estilo de hugo mãe, que encontra sua matéria-prima na oralidade, com traços que sugerem uma sintaxe medieval. Afinal, a beleza de sua prosa não está na reconstituição filológica de um estado de formação da língua portuguesa, mas na imaginação lingüística de traços arcaicos da sintaxe a partir dos elementos contemporâneos da língua (daí a aproximação com o estilo de Raduan Nassar, em Lavoura arcaica, como apontou antes Antonio Gonçalves Filho). Aliada a isto, a narrativa apresenta personagens que, vivendo durante a Idade Média (o relato se passa no reinado de D. Dinis), misturam magia e violência, carinho e porrada com uma estranha naturalidade com que igualmente nos deparamos no cotidiano das metrópoles. A relação de amor entre baltazar, o narrador, e ermesinda é de uma crueldade impressionante que, por mais irônico que pareça a nossos olhos, produz pouco ou nenhum drama à consciência do marido apaixonado. Assim, aos ciúmes que sentia de ermesinda com dom afonso, o senhor da casa grande a quem serviam, baltazar age do seguinte modo:
puta em minha casa era coisa de rastejar, e ao invés de conseguir estragar novo pé, virei-lhe braço que agarrei e aproveitei de o escolher. se lhe arranquei uns cabelos, nada se notaria na manhã seguinte. (…) foi como ficou, nada desfeada, apenas mais confusa no arrumo do corpo, a minha pobre mulher mal educada e não preparada para o casamento. o anjo mais belo que eu já vira, por sorte tão incrível, minha esposa, amor meu.
Arte e loucura
Ao lado desta naturalização da violência, a arte ocupa o lugar da loucura que procura apaziguá-la, como quando surge o artista no irmão mais novo de baltazar, após a morte de sua mãe. Pintava sobre madeira “os anjos do céu, as nuvens, o azul mais celeste ali aceso, mesmo à noite, se luz lhe era levada por pequena vela que fosse”; “sem ócios nem maneiras, o nosso aldegundes pintava de ter mandamento de deus para o fazer”. Sobre a mãe morta, o menino artista observava: “o aldegundes dizia, não me lembro da cara dela, confundo-a com cada rosto que vejo, e há pormenores que o diabo me esconde. mas vou pintar todo o céu até a encontrar”.
A elaboração de todo este imaginário medieval pelas relações sociais representadas e pelo estilo constituído produz uma relação de anacronia entre o livro e o tempo presente, fazendo com que, em lugar de reconhecer o nosso tempo pelas marcas de semelhança entre ficção e realidade, reconheçamos em diferença uma relação entre as duas instâncias. Isto não significa que não haja aproximações entre a narrativa e a história contemporânea à publicação do livro; muito pelo contrário, esta aproximação será tanto mais forte quanto mais ela for estrutural, e não anedótica. Não a história de um homem de nosso tempo, mas a história de um homem da Idade Média que, pelo desvio, encontra semelhanças com o homem de nosso tempo.
Há outra passagem que pode ser esclarecedora. Em mais uma agressão apaixonada à mulher, após arrancar-lhe um olho, baltazar, sem nenhuma nota de culpa, sem remorso, propõe-lhe um curativo: “fiz eu coisa que me ocorreu, trocar olho por terra, buraco onde o deitei trouxe punhado para dentro e lhe enchi cara com ela, que lhe absorvesse sangue e porcaria saindo”. Em mais um momento de violência como este da narrativa, não reconhecemos como nosso, como nós, um sujeito assim que, sem profundidade subjetiva, esquece seus atos cruéis, legitimados, por um lado, pelos seus iguais e, por outro, pelo amor que reafirma a todo momento. Quase não há drama. Estamos longe aqui de Raskólnikov, o atormentado personagem de Dostoiévski.
Tampouco estamos em 1866, ano em que Crime e castigo é publicado. Ainda menos estamos na Rússia. O que reconhecemos neste Portugal recente é a persistência deste arcaísmo, e isso desde a obra decisiva de Os Lusíadas, épico cujo eu poético abandona a narrativa diante da parca recepção que a obra teria entre os portugueses e cujos deuses oferecem uma máquina do mundo medieval a um herói que abre os caminhos futuros da modernidade para a história portuguesa. Esta nota de atraso que é, ao mesmo tempo, a possibilidade moderna de uma cultura espalha-se também pelo Brasil, ainda mais quando reencontrada no livro de um português que ainda está para completar sua quarta década de vida.
Por tudo isso é que, em o remorso de baltazar serapião, é a arte um lugar possível para o encontro de oceanos entre Brasil e Portugal, pois nela toda a superficialidade de um sujeito, como baltazar, com quem nos identificamos, e toda a opacidade entre duas culturas estão abertas à transformação amorosa a partir do momento em que uma obra se faz.
tábua sensível de beleza, dizia el-rei, como se um objeto se pudesse apaixonar pelo seu próprio aspecto, é como estou certo de que esta tábua está doida de amores por si mesma, e nunca quererá, em toda a eternidade, aparentar outro aspecto que não este, dizia em alto som para que todos ouvissem seu agrado.
Assim é que valter hugo mãe estréia em terras brasileiras com obra tão prazerosa quanto inquietante. De fato, este amor das palavras por si mesmas, um texto de leitura pode dizê-lo e fazê-lo. Agora que o olho e a mão do leitor já não estão mais limpos, resta sujá-los ainda mais com o lirismo incessante e, às vezes, cruel e desumano da prosa deste português.