Em um ensaio chamado O valor do riso, Virginia Woolf diz que o riso “preserva o nosso senso de proporção”, de modo que quando perdemos a capacidade de encontrar graça, perdemos também “o nosso senso de realidade”. É um bom ponto de partida para ler o Correio literário, de Wislawa Szymborska, um breve volume com as respostas da poeta a escritores aspirantes que enviavam seus textos à revista polonesa Vida literária. O senso de humor e as ótimas analogias, elementos também presentes em seus poemas, divertem enquanto fazem pensar sobre a seriedade envolvida no ofício da escrita.
Correio literário contém cartas escritas ao longo da década de 1960, e lê-las em 2022 é bastante intrigante. Embora a perspicácia e a firmeza de Szymborska tenham um valor anacrônico, é mesmo de se pensar se tal agudeza de juízo encontra espaço em um mundo como o nosso, caracterizado por uma difusa aspiração de diferenciar-se do todo, ao mesmo tempo em que a proliferação de cursos e workshops quer nos levar a crer que a obra-prima está apenas a algumas aulas de distância da concretização bem-sucedida. Talvez precisamente por isso valha a pena lê-lo nos dias de hoje.
A elegância irônica da escritora é tão divertida e assertiva que prefiro desempenhar o papel de curadora e propor uma seleção de fragmentos. É curioso notar como os nãos sobressaem às indicações ou às diretrizes imperativas. Talvez porque não exista um mapa para estradas que nunca são completamente percorridas, mas, com o desejo como bússola, pode ser possível encontrar eventualmente alguma direção.
Saber ver
Não tente ser poética a qualquer preço; a poeticidade é chata, porque é sempre secundária. A poesia, como, aliás, toda a literatura, retira suas forças vitais do mundo em que vivemos, das vivências realmente vividas, das experiências realmente sofridas e dos pensamentos que nós mesmos pensamos.
Ao passo que a literatura retira suas “forças vitais” da capacidade de sentir e pensar, é necessário também “que o poeta fale a língua da sua época”. Por um lado, trata-se do trânsito entre o que é experimentado profundamente e subjetivamente e a sensibilidade de captar as condições de vida de determinado tempo. Por outro, o que está em questão é realmente ter algo a dizer, que não seja o rancor nem o exibicionismo de erudição com um tipo de orgulho que não passa do acúmulo de referências ou a reprodução do que foi anteriormente consagrado.
Outro obstáculo para a capacidade de realmente conseguir ver, destacada no Correio, é o impulso de castigar os personagens até o ponto em que perdem qualquer traço humano. Seja por causa de uma associação simplista entre sofrimento e arte, seja uma tentativa malsucedida de criticar a banalidade alheia — isentando-se de afetos rebaixados ou mesquinhos —, o resultado costuma ser um desfile de marionetes incapazes de expressar qualquer coisa que concerna verdadeiramente à vida.
Eventualmente, é o estabelecimento de saída de um propósito ou de um estilo que enrijece e esteriliza um projeto literário. Escrever uma história realista, por exemplo, “só se torna realizável lá onde termina o esquema e as pessoas que entram em ação começam a pensar e sentir mais ou menos à semelhança das pessoas vivas”. Ainda que o ponto de partida seja a aridez e a desilusão, o vigor é necessário, porque “até sobre o tédio é preciso escrever com paixão”.
A inspiração
Lemos e lemos, avançamos com dificuldade pelas paginazinhas cheias de manchas e rabiscos negros, e de repente um pensamento nos deslumbra: por que não poderíamos nos render à frustração? Outros podem e nós não? Por que temos de querer ler isso, se tudo indica que nem o autor se interessou em passar o texto a limpo?
O contrário da seriedade não é humor, é desleixo. E o desleixo às vezes pode tentar usar fantasias rebuscadas ou vistosas, como a inspiração, quando alguém é acometido por uma corrente de pensamentos fervorosos que o obriga de chofre a sentar e tentar colocar no papel aquela enxurrada surpreendente de nexos e imagens que vêm à mente, até porque parece que se esperar um segundo a mais aquilo tudo pode se perder. De fato, é extremamente prazeroso quando nossa cabeça é invadida pela vitalidade, no entanto, a injeção de ideias costuma ser um início em potencial, não o fim.
O trecho acima é apenas um dos exemplos de fragmentos do Correio que fazem menção a textos mal-acabados, quase ilegíveis, cheios de erros ortográficos. Se a escrita apressada com um computador tende a ser um pouco menos cruel com os olhos de um primeiro leitor, a premência de trabalhar um texto antes de sequer considerar publicá-lo não depende da ferramenta usada para redigi-lo, porque “a pressa, salvo raríssimos casos, cria produtos semiacabados”. Até mesmo a mais frutífera visita da musa inspiradora carece de tempo, cuidado e atenção para virar alguma coisa, o que não é exclusividade do ofício literário.
Quer ser poeta?
Em primeiro lugar, deveria se preocupar se tem algo a dizer. Sob esse aspecto, esses poemas são estéreis, o que nenhum truque formal no mundo vai disfarçar. “Quero ser poeta…” E essa agora? De novo o senhor está pegando as coisas pelo lado errado. Sem dúvida, preferimos aqueles que simplesmente “querem escrever”. Somente isso é sério.
A reação à idealização do ofício do escritor talvez seja o aspecto mais recorrente das respostas de Szymborska. Quando querer ser poeta se sobrepõe ao efetivo desejo de escrever, em geral o texto sofre os efeitos por causa das marcas da preocupação não com a expressão em si, mas com “estar sendo ou não suficientemente poeta”. A artificialidade tende a resultar em uma escrita esquecível. Pretensiosa porque pretende deliberadamente causar espanto ou emoção no leitor, ou confusa porque as palavras são amontoadas “em pilhas tão altas de metáforas soltas que estas impedem a visão do mundo além delas”.
Escrever imaginando um público que “vai à loucura, uma multidão atrás de autógrafos, fotografias nos jornais, entrevistas” é tentar garantir certa dignidade a tolas, embora compreensíveis, fantasias de reconhecimento. Possivelmente, em cada um de nós exista uma parte sedenta por reforço positivo, só que provavelmente não é esta parte que pode gerar um texto capaz de comunicar alguma coisa para um outro.
Em geral, é uma operação que não dá certo, e mesmo que consiga prosperar de algum modo é provável que o texto fique restrito à particularidade do autor, porque a projeção imaginária se alimenta demais de frustrações individuais para viabilizar que alguém medite sobre o que realmente importa. Já o desejo de escrever… deve viver em outro habitat e se abastecer de outra substância, que não a frustração, uma capaz de permitir que o impulso de dar forma à beleza e ao absurdo da vida resista aos períodos infrutíferos.
Uma das analogias de Szymborska é particularmente divertida e clara quando o assunto é a insuficiência da aspiração de ser poeta: “Julgam que as boas intenções automaticamente decidem sobre a forma. E, no entanto, para se tornar um sapateiro decente, não basta ser um entusiasta do pé humano”. Divertida porque aproxima coisas diferentes e surpreendentes; clara porque dá o sentido de trabalho ao ofício da escrita, e assim a necessidade de preparo, dedicação, fazer e refazer.
O valor dos outros
Acontece com bastante frequência de o redator deste Correio ler cartas com ameaças. Essas cartas dizem mais ou menos o seguinte: por favor, me diga se os meus textos valem alguma coisa, porque se não tiverem darei imediatamente um fim nisso, rasgarei tudo, jogarei no lixo, vou me despedir dos meus sonhos de fama, vou ficar desesperado, vou duvidar de mim mesmo, terei um colapso, começarei a beber, deixarei de acreditar no sentido da minha própria existência etc. etc. O redator então não sabe o que fazer. O que quer que venha a escrever pode ser perigoso. Se escrever que os poemas ou a prosa são ruins, está armada uma grande tragédia. Se escrever que são bons, o autor vai pirar de vez com sua suposta aptidão (já houve casos assim).
A projeção da atividade do escritor como o mais edificante dos ofícios parece gerar a expectativa de que um elogio seja o equivalente a um passe livre para o Olimpo. Para além da desproporção do peso atribuído à recepção, ao invés da dedicação ao processo de execução, a resposta jocosa de Szymborska faz pensar sobre como é perigoso prender-se às coisas como se fôssemos um náufrago que agarra um tronco para sobreviver em meio à deriva, em vez de ligar-se a elas por amor, o que, mais uma vez, extrapola a profissão de escritor.
Por que o diagnóstico positivo de um terceiro deveria ser tão determinantes para sustentar uma escolha? A aprovação dos outros seria a confirmação de que não somos apenas mais um na multidão? Não seria esta uma agonia compartilhada? Não seriam precisamente as agonias compartilhadas, embora tão difíceis de nomear, um dos alimentos da criação literária? Será que temer tanto assim a banalidade da vida é realmente congruente com a inclinação para narrar as vicissitudes da existência? E o que é, afinal, o talento? Seria realmente um atributo inato?
Szymborska acredita que sim. Ela afirma essa ideia em algumas das respostas e também na entrevista concedida a Teresa Walas, a responsável pela organização do volume, que abre a edição brasileira do Correio literário. Parece, no entanto, que a escritora não encara o talento apenas como uma dádiva do destino concedida a alguns poucos iluminados, até porque sempre existirá um preço bem alto a ser pago. Em diversos momentos, o ofício do poeta é aproximado de outras profissões por meio da premissa de que o valor de um trabalho reside na qualidade de sua execução, e não em sua natureza: “Ainda persiste a ideia romântica de que ser poeta é a maior glória e honra, enquanto a maior glória e honra é fazer com excelência aquilo que se sabe fazer”.
No final das contas, o comprometimento, embora não garanta nada, é incontornável. E o talento talvez só consiga encontrar um solo fértil para criar raízes na capacidade de atribuir nobreza a um ofício através da dedicação investida no processo, sem condicionar os esforços a uma palavra elogiosa ou aos bons ventos circunstanciais. Associar a alegria à exceção em geral é bem arriscado, porque a ordem rotineira, por contraste, só tem como adquirir um juízo fatalmente penoso. Já quando o processo consegue ter mais valor que o fim, o ritmo cotidiano da execução pode ter como componente alguma graça que brota da própria realização.