Vimos no texto anterior desta série como o fato de o protagonista, na história de Um copo de cólera, não aparecer designado por um nome próprio contribui para a identificação que poderíamos fazer com o escritor que se oculta na obra. Entretanto, a ausência do nome também pode ser vista como um desejo de universalismo, simplesmente. O livro trata dos conflitos e disputas vivenciados por um casal, e o homem — ou a mulher — em questão poderia, simbolicamente, ser qualquer um de nós.
Voltemos, porém, ao parentesco entre a personagem masculina colérica e o adolescente André. Não são o mesmo indivíduo: sabemos, em determinada altura de Um copo de cólera, que o homem ficou órfão de pai aos treze anos, enquanto que André, aos dezessete, enfrenta os conselhos e a fúria do patriarca de sua família. Embora sejam então personagens diferentes, e não uma única personagem em duas etapas de vida, existem os laços literários a uni-los. Produtos de um mesmo autor, só podem assemelhar-se, como irmãos de arte. Assim é que, em determinado instante, o discurso do homem parece retirado de Lavoura arcaica:
(…) sim, eu, o extraviado, sim, eu, o individualista exacerbado, eu, o inimigo do povo, eu, o irracionalista, eu, o devasso, eu, a epilepsia, o delírio e o desatino, eu, o apaixonado (…) eu, o pavio convulso, eu, a centelha da desordem, eu, a matéria inflamada, eu, o calor perpétuo, a chama que solapa (…) eu, o manipulador provecto do tridente, eu, que cozinho uma enorme caldeira de enxofre (…) eu, o quisto, a chaga, o cancro, a úlcera, o tumor, a ferida, o câncer do corpo.
O desejo de declarar-se maldito colabora para a intensidade dramática e para o conflito que o homem estabelece com a parceira. Esta, aliás, também é vista de maneira ambígua, assim como Ana, de Lavoura arcaica. Mistura de santa e pecadora, a irmã de André contracenava secundariamente no livro, surgindo como a razão do conflito, concentrado no amor incestuoso.
Entretanto, a mulher de Um copo de cólera é bem mais ativa e participante da história, ainda que durante a maior parte do livro o narrador seja o homem. A ambiguidade desta nova personagem feminina está não apenas do seu perfil de fragilidade e força. Ela é, por um lado, a figura materna, que vê o homem como um menino e sabe receber “aquele enorme feto”, mas, ao mesmo tempo, sabe fazer-se ameaçadora: “era um inseto, era uma formiga”. Quando o narrador identifica a mulher com a formiga, é como se reconhecesse no sexo feminino a intrínseca capacidade de ataque, o poder de abrir brechas na cercadura do homem.
Entretanto, esta mulher-inseto, em outras vezes, é vista com a singeleza de uma ave, lembrando a cena de Lavoura arcaica, quando André via a irmã caminhar por uma armadilha de sedução, feito uma pomba a ser aprisionada: “(…) os peitos empinados subindo e descendo, as penas todas do corpo mobilizadas, tanto faria dizer no caso que a ave já tinha o voo pronto, ou que a ave tinha antes as asas arriadas”.
Mas a mulher de Um copo de cólera, longe de ser a camponesa incorporada por Ana, faz parte de um universo bem diferente do rural. Jornalista, feminista, democrata, seu discurso se faz ouvir como uma fala autônoma, que constrói o seu perfil de personagem. Porém, em determinados momentos, as ideias que ela defende, as regras que estabelece, soam como uma nova lavoura arcaica, semelhante à que pregava o pai de André:
(…) pensei também na página mais intensa do seu livro de sabedoria (ao lado da pregação contra o egoísmo), ela que ainda era, com a dispersão da prole, a depositária espiritual de um patrimônio escasso, a lição que ela repetia sempre nas raras vezes que me via, um filho só abandona a casa quando toma mulher por esposa e levanta outra casa para nela procriarem, e seus filhos, outros filhos, era esse o movimento espontâneo da natureza, procriar e com trabalho prover o sustento da família.
Não admira que a disputa entre homem e mulher se faça tão intensa e teatral quanto o conflito entre pai e filho: a oposição entre os sexos pode ser muito parecida com a distância que permeia duas gerações. O fazendeiro de Um copo de cólera, aliás, não parece ter tido uma infância muito diferente daquela em que o menino André estivera adormecido:
(…) tínhamos então as pernas curtas, mas debaixo desse teto cada passo nosso era seguro, nos parecendo sempre lúcida a mão maciça que nos conduzia, era sem dúvida gratificante a solidez dessa corrente, as mãos dadas, a mesa austera, a roupa asseada, a palavra medida, as unhas aparadas, tudo tão delimitado, tudo acontecendo num círculo de luz, contraposto com rigor — sem áreas de penumbra — à zona escura dos pecados, sim-sim, não-não, vindo da parte do demônio toda mancha de imprecisão.
Se a infância parece ser o momento da segurança e do aconchego familiar, se o homem recorda o menino como um ser tranquilo em seus limites de criança, depois da perda da inocência tudo se transtorna. É assim que o narrador constata que a maturidade traz incertezas (da mesma forma que a adolescência de André lhe trouxe contradições): “(…) era pois na infância (na minha), eu não tinha dúvida, que se localizava o mundo das ideias, acabadas, perfeitas, incontestáveis, e que eu agora — na minha confusão — mal vislumbrava através da lembrança”.
Um copo de cólera, no entanto, tem as suas peculiaridades — e a questão do jogo é uma delas. O jogo cênico, o jogo verbal, o jogo sexual: tudo se relaciona numa rede de aparências e esconderijos, onde mais vale dar a entender do que se confessar. Dessa maneira, na briga entre os amantes, o narrador deixa claras suas estratégias de fingimento, como quando diz: “(…) fiz aliás que partia pro bate-boca, fiz que ia na dela (…), mas fui montado nos meus cálculos”.
O disfarce que cada um assume, as artimanhas de ataque e defesa, entram no livro como uma verdadeira estratégia cênica. Podemos lembrar as palavras de Mikhail Bakhtin, ao dizer, a respeito do discurso de Rabelais, que “o exagero, o hiperbolismo, a profusão, o excesso são, segundo opinião geral, os sinais característicos mais marcantes do estilo grotesco”. Vejamos se tal estilo também não pode ser apropriado à descrição seguinte:
(…) você me faz pensar no homem que se veste de mulher no carnaval: o sujeito usa enormes conchas de borracha à guisa de seios, desenha duas rodelas de carmim nas faces, riscos pesados de carvão no lugar das pestanas, avoluma ainda com almofadas as bochechas das nádegas, e sai depois por aí com requebros de cadeira (…); com traços tão fortes, o cara consegue ser — embora se traia nos pelos das pernas e nos pelos do peito — mais mulher que mulher de verdade.
A sátira com que o narrador se refere à companheira é uma caricatura que nos leva novamente ao neobarroco, se atentarmos para a explicação bakhtiniana: existe uma “ambivalência profunda e essencial do grotesco”. Onde normalmente se percebe apenas uma exageração realizada com finalidades estritamente satíricas, há espaço para o humor, o riso e a festa. A ambiguidade satírica da carnavalização é, portanto, um sinal da dubiedade barroca. O termo grotesco, aliás, é usado no teatro como referência ao drama romântico, que com frequência transitava da tragédia para a comédia, completando assim um circuito de opostos que outra vez nos leva aos extremos barrocos.
Travestir-se de palavras, criar seu próprio carnaval, faz parte das ardilezas do combate narrativo. A linguagem tem importância decisiva na encenação da cólera, na obra de Raduan Nassar. O próprio texto acentua esta característica: “(…) eu disse trocando de repente de retórica (…), argamassando o discurso com outra liga, me reservando uma hóstia casta e um soberbo cálice de vinho enquanto entrava firme e coeso (além de magistral, como ator) na liturgia duma missa negra”.