Aos meus versos, escritos tão cedo,
quando eu nem sabia, eu — poeta,
a jorrar, como pingos de uma fonte,
como faíscas de um foguete,
a pular, como pequenos diabos,
no santuário, onde há sono e incenso,
aos meus versos de juventude e morte —
versos nunca lidos!
espalhados em estantes empoeiradas
— onde ninguém os pegou e nem os pegará —
aos meus versos, como os vinhos raros,
chegará a sua hora
Esse poema propicia encontros. Diz com exatidão o que todo poeta em certo momento gostaria de dizer, mas lhe falta clareza, força ou honestidade. Quando nos deparamos com um poema assim, que gostaríamos de ter escrito, quando um poema que acabamos de ler passa a ser nosso é porque transpôs barreiras — de pessoa, de identidades, de vida, de tempo, de cultura e, caso provindo de um lugar distante, de fronteiras geográficas e diferenças idiomáticas —, transpôs barreiras e a poesia se fez em plenitude.
Assim é a poesia de Marina Tsvetáeva: simplicidade poderosa. Poeta e tradutora russa, nasceu em 1892, em Moscou, de família nobre — voltada à arte, cultura e ao conhecimento. Viveu num período extremamente turbulento da história da Rússia. Além das enormes agruras por que todos passaram por conta da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com a revolução soviética (1917) ela perde tudo que herdara. Seus pais e seus avós doaram bibliotecas para museus, ela vendeu a dela para fugir da fome. Em 1913, quando escreve essa metáfora amorosa “E como meu coração ficou em chamas/ com essa pólvora desperdiçada em vão”, não se imaginava no mundo de pólvora que entraria em breve. Ou, pitonisa, já antevia no amplo horizonte o movimento do futuro?
Tu, que tens sonhos eternos,
Que te movimentas em silêncio,
Vai para a travessa das Três Fontes
Se amas meus versos.
(…)
Em breve esse mundo será destruído,
Contempla-o em segredo
Enquanto o álamo ainda não foi cortado
E a nossa casa ainda não foi vendida.
(…)
Este mundo inexoravelmente belo
Tu ainda encontrarás, apressa-te!
Vai para a travessa das Três Fontes
Para a alma da minha alma.
Este poema também é de 1913. Ela escrevia de uma borda do tempo secular, jovem, sem poder supor a dimensão da tragédia pessoal e global que augurava. A nova situação social do nascente estado soviético, se não adotara a revolução permanente de Trotsky, nunca deixará de parecer estar em permanente guerra para o povo, tais os níveis de dificuldade pelos quais passavam. “Passar”, nos versos que nos traz a antologia, é um verbo em evidência… Passar no momento, como escrevia em plena guerra que sugava a população e estimularia a Revolução.
“Passo a pão e água/ Amargura-pesar, amargura-tristeza./ Cresce uma erva como esta/ Em teus prados, Ó Rússia” (10/06/1917); ou pouco após o Outubro, “Passei o ano-novo sozinha./ Eu, rica, fui pobre,/ Eu, alada, fui, maldita (31/12/1917). Passar como o que o tempo lhe recusa, “Meu caminho não passa pela casa — tua./ Meu caminho não passa pela casa — de ninguém” (27/04/1920). Abandono extremo, de quem teve o marido desaparecido na guerra com o exército dos “russos brancos”, uma filha morta de fome (Irina).
Em 1920, em meio aos gestos de recusa, a poeta parecia antever que o pior ainda viria. “Não quero nem amores, nem honras/ (…) Não quero nem uma maçã/ (…) Atrás de mim arrastam-se correntes, logo romperá o som do trovão”. E há o passar da brevidade da vida, passar é próprio do tempo, é da vida no tempo.
Pela terra passei dançando! — Filha do céu!
Com um avental cheio de rosas! — Sem nenhuma a brotar!
Sei, morrerei no lusco-fusco! — Para a noite do falcão
Deus não me dará alma de cisne!
Exílio e morte
Depois de reencontrar o marido, Serguei Efron, Marina Tsvetáeva, a partir de 1922, passará 17 anos no exílio, entre Praga, Berlim e Paris, sob condições de subsistência difíceis. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, como ocorreu com milhões de pessoas pelo mundo, o ritmo da tragédia na vida da poeta se acelera e se intensifica.
Antes contrário aos bolcheviques, Serguei muda de posição. Acusado de assassinato na França, volta a Moscou, agora URSS, com sua filha Ariadna, onde viverá de 1939 a 1941. Logo que chegam, seu marido e filha serão presos, acusados de espionagem. Pouco depois, por insistência do filho mais novo, Georgi, Marina retorna também a Moscou. Longe de qualquer aprovação oficial, sob suspeita, passa a viver com o caçula de modo mais miserável do que nunca.
Em junho de 1941, os exércitos alemães iniciam a Operação Barba Rossa, invadindo a União Soviética. Dentro de um plano nacional de remoção da população, Marina e o filho são deslocados para Elabuga, no Tartaristão. Em 31 de agosto, sob fome extrema, a poeta se suicida (ou terá sido morta?). Ela tinha 48 anos. Sua filha, Ariadna, presa desde 1939, será liberta dentro das políticas de revisão e condenação dos crimes de Joseph Stalin, no governo de Nikita Khrushchov, em 1955. Ariadna é o fio que permitiu resgatar em grande parte a obra de Tsvetáeva. Poesia do exercício mais rigoroso de despojamento formal, como só a temos no melhor de Manuel Bandeira e Mario Quintana.
Tradução
Quando ocorre a ausculta e vibração da poesia, com versos vindos de terras distantes, há de se apreciar também a arte de quem os trouxe superando as distâncias e fazendo eclodir na nossa língua a poesia construída em outra. O trabalho de tradução direta do idioma original, pela doutora em língua e literatura russa Verônica Filíppovna, estudiosa e tradutora da poeta desde 2006, merece destaque especial. É trabalho de poeta nas duas línguas: verteu poesia em poesia. Fez com a leitura poesia, lá na língua de terras distantes, e fez aqui poesia em nossa língua. A poeta escreveria em meio às agruras de 1940:
— Chegou a hora! Para este fogo —
Estou velha!
— O amor é — mais velho que eu!
— Uma montanha
De cinquenta janeiros!
— O amor é — ainda mais velho!
Velho, como a cavalinha, velho, como a serpente,
Mais velho que o âmbar da Livônia,
Mais velho que todos os navios
Fantasmas! — As pedras velhas — os mares…
Mas a dor que tenho no peito —
É mais velha que o amor, mais velha.
Pouco a pouco, a obra de Tsvetáeva foi se tornando conhecida, admirada. Hoje, ela é uma das mais aclamadas poetas do século 20. No Brasil, teve poemas traduzidos, na coletânea Poesia russa moderna, por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. Augusto de Campos, mais uma vez, em Poesia da recusa. Décio Pignatari, em Marina. Aurora Fornoni Bernardini, em Indícios flutuantes, O poeta e o tempo (ensaio) e Vivendo sob o fogo: confissões (correspondência selecionada por Tzvetan Todorov). Agora, Aos meus versos escritos tão cedo… chegará a sua hora e Elos líricos – Poemas e prosa a grandes poetas, com tradução de Paula Vaz de Almeida.
Voz presente
Niterói, Rio de Janeiro, março de 2022. Longe, muito longe da Rússia, da guerra na Ucrânia, mais ainda daquela Guerra Patriótica contra os nazistas de 1941 a 1945. Mais ainda das guerras revolucionárias iniciadas em 1917. Chego à janela e vejo a moça deslizar, pés nos pedais, numa das mãos um celular, noutra o guidão da bicicleta. Um olho no aplicativo, outro no trânsito. Na garupa, a caixa de entrega de comida. A voz de Tsvetáeva está ali, muito próxima dela, nunca próxima dos homens que decidem pôr populações em guerra, não importa em que época.
Os dias se arrastam feito caracol,
… Linhas diárias da costureira …
Que importa minha vida?
Se não é minha nem tua.
E que importam meus
Problemas… — Comer? Sonhar?
Que importa a morte do meu corpo?
Se não é meu nem teu.