O chiaroscuro (de) Machado de Assis

Vinte anos de pesquisas acadêmicas derrubam o mito de que a obra do maior escritor brasileiro é alheia à escravidão e a seus legados
Ilustração: Machado de Assis por Fabio Miraglia
01/05/2022

Ainda hoje há quem se admire ao saber que o nosso maior autor, Machado de Assis (1839-1908), não era um homem branco. Dois dos fatores que contribuem para a produção de tal estupefação podem ser elencados prontamente. Um deles é o fato de que durante o século 20 sua aparência física passou por um processo cosmético de branqueamento tão eficaz ao ponto de selecionarem um ator branco para representá-lo num comercial televisivo em 2011. O outro, do qual este é um dos desdobramentos, configura-se naquela — imaginada e implementada como verdade inexorável — noção de inferioridade das pessoas de ascendência africana que foi arquitetada e construída no processo de colonização. Foi aplicando essa lógica que se chegou à conclusão de que um grande autor no/do século 19 só poderia ser uma pessoa branca.

Isso porque se trata de um país cuja maioria da população proclama não ser racista e afirma que a cor da pele é irrelevante, mas empenha-se, consciente ou inconscientemente, em todas as frontes, para se alinhar física e simbolicamente (por meio de procedimentos cosméticos e normas de conduta variadas) ao modelo de civilização oriundo e constituído como parte indissociável da expansão da branquitude. Nesse cenário não se pode desprezar as medidas coercitivas de branqueamento perpetradas por instituições oficiais que demonizam a aparência, práticas e costumes afro-brasileiros, dificultando o ingresso a seus quadros àquelas pessoas que não se submetam a essa regra tácita.

Tais fatores exerceram papel importante na recepção de obra de Machado de Assis, que por muito tempo foi lida como produto exclusivo da genialidade de um autor filiado à tradição literária e filosófica ocidental, branco e alheio à escravidão e seus legados, desconsiderando-se o seu entorno. Contudo, motivado por linhas recentes de pesquisas acadêmicas inauguradas faz parcos 20 anos, fiz um levantamento que abrangeu todos os romances, livros de conto, poesia e teatro publicados em vida (totalizando 25 títulos), para averiguar a frequência de referências à escravidão e às pessoas de ascendência africana. Ao fazer uma leitura com olhar mais atento a ocorrências de personagens africanas e afro-brasileiras, assim como a instâncias em que o sistema escravocrata se faz presente em sua obra, deparei-me com um resultado que revela uma faceta distinta da amiúde difundida.

Machado delineou personagens africanas e afrodescendentes em todas as possibilidades que seu mundo lhe oferecia, incluindo as que não estavam em condição física e simbólica de escravidão (feito ele mesmo). Em alguns momentos lhes designou protagonismo, como no caso de Sabina do poema homônimo, ou (ainda que, desta feita, de maneira deliciosa e dissimulada) no do marinheiro Deolindo Venta-Grande do conto Noite de almirante. Isso sem mencionar os casos em que Machado não providencia descrição física de personagens protagonistas e que ainda assim têm sido lidas como brancas, como Janjão, de Teoria do medalhão, Nogueira, de Missa do galo, Damião, de O caso da vara, e — impossível não me adiantar e omiti-lo aqui — Cândido Neves, de Pai contra mãe, entre outros. Ademais, o sistema de relação servil — que proporcionava aos abastados uma vida alheia a preocupações cotidianas em relação ao trabalho, mesmo quando de caráter intelectual — está presente na maioria de seus textos narrativos examinados e em alguns dos demais gêneros nos quais o autor exercitou sua pena, especialmente a da galhofa.

A corriqueira afirmação de que Machado não se preocupava com a questão racial ou com a escravidão, espalhada aos quatro ventos, além de não ter fundamento no texto machadiano e de, em última análise, ser contraditória — se queremos continuar enaltecendo-o como o nosso maior autor e “homem de seu tempo” —, reproduz o desejo dessa sociedade que tenta apagar do registro histórico e da memória do país o opróbrio da escravidão, uma vez que, sendo a questão mais importante do nosso Oitocentos e força-motriz das mudanças políticas ocorridas, ela foi matéria inevitável e intransponível de (e para) quase todos os autores e autoras oitocentistas. A grande diferença, no caso de Machado de Assis, se dá no seu estilo literário, enaltecido por leitores no Brasil e no mundo, que o destaca de todos os demais.

Hipocrisia desvelada
Quanto à escravidão em si e ao tratamento que sua sociedade lhe dispensava, Machado criou cenas que a apresentam constantemente como pano de fundo e assunto dos debates sobre temas cotidianos como o governo, as eleições, a economia, os acontecimentos no estrangeiro, entre outros, além, ainda, de recorrer com frequência (demasiada para que fosse por acaso) à metáfora do amor ou do relacionamento amoroso como um “cativeiro”.

Machado desvela a hipocrisia de todos (e de todas), sem exceção: tanto dos abolicionistas, quanto dos escravocratas e dos ditos neutros. A exemplo deste, há Rubião, herdeiro de Quincas Borba no romance homônimo, que não queria ter “escravos”, mas não se importava com a escravidão como instituição. Ou ainda se podem citar Raimundo, do romance Iaiá Garcia, e Chico, do conto Um erradio, que eram livres, mas que, assim como várias personagens, viviam em situação de escravidão de facto. Este último, inclusive, sendo vendido na condição de escravizado para que a importância recebida por ele fosse fonte para o pagamento de seu próprio ordenado por seus patrões falidos. Em outras palavras, um homem livre voltou à escravidão para poder se livrar de seus patrões inadimplentes. Essas nuanças são exemplos de como Machado, ironicamente, apontava o alcance do dano psicológico de caráter irreparável a curto prazo e que ainda hoje assombra algumas pessoas afrodescendentes séculos depois do começo do processo de desumanização a que elas foram submetidas.

Até mesmo o ilustre médico Simão Bacamarte, tido como grande cientista, inteligentíssimo, esclarecido, estudioso das enfermidades mentais, fundador e administrador da Casa Verde do famoso e — merecidamente — aplaudido conto O alienista possuía “escravos” que serviam a sua esposa. Aliás, enquanto, com a ajuda da “mucama”, D. Evarista ajustava a bainha de um dos seus 37 vestidos, foi que, por meio do “moleque”, de quem ela duvidou, e que por isso depois experimentou um átimo de triunfo quando se constatou que ele dizia a verdade, lhe chegou a notícia sobre a rebelião que havia começado.

Nada nessa sociedade funcionava sem a intervenção dos/as afrodescendentes que, diga-se de passagem, sempre estavam a par de todos os segredos e assuntos, públicos e privados, como atesta a personagem “mulatinha alta e elegante” do conto A parasita azul, única conhecedora do mistério que envolve a narrativa. Como se sabe, mesmo na chamada Guerra do Paraguai eles tomaram parte ativa e Machado menciona tal fato no conto Galeria póstuma, em que o protagonista “dá” libertos para o conflito e por isso recebe uma comenda, o que demonstra mais uma vez sua condição precária de escravidão simbólica.

Em toda obra
As personagens africanas e afrodescendentes se distribuem por toda sua obra, muitas vezes em forma de menção direta e outras de forma menos explícita, e até mesmo invisíveis, mas detectáveis no contexto de cenas cotidianas, já que o chá da “Sinhá” não se preparava sozinho ou chegava à sala de visitas por suas próprias pernas. Nos casos explícitos, exercendo as mais variadas funções, desde o trabalho nas fazendas e nos domicílios, a amas de leite e aos chamados “escravos” de ganho, formando a base de sustentação da sociedade fluminense, já que mesmo as personagens menos abastadas possuíam “escravos” ou se valiam de seu trabalho de alguma maneira.

Salvo engano, o autor lança mão de todo o inventário lexical disponível à época para referir-se a essas personagens e isso não é apenas um dado curioso que ilustra seu trabalho meticuloso, mas também um registro das nomenclaturas utilizadas e seus significados específicos. Suas personagens eram: escravos/as, moleques, mucamas, pretos/as, forros/as, libertos, criados, mulatinha, pajens, crioulos e negros. E se, com o passar do tempo, alguns vocábulos cobraram outro significado, como “moleque” por exemplo, enquanto outros se fundiram em um campo semântico único, raramente esses termos eram empregados por Machado como sinônimos.

O substantivo “negro”, por exemplo, é empregado duas vezes para referir-se aos sequestrados que ou estavam a caminho nos navios ou que haviam recentemente aportado, mesmo com a criminalização do tráfico. Portanto, na sua obra nenhum brasileiro era “negro” como (infelizmente) hoje em dia é o caso de empregar-se tal substantivo abertamente. Uma conclusão a que se pode chegar é que Machado procurou bosquejar cada uma das funções e condições/situações, por meio do léxico disponível, a que tais pessoas eram submetidas.

A presença de pessoas de ascendência africana não se resume às passagens famosas. Estas são, em geral, atreladas a descrições de violência racial, como em O caso da vara, ou no do “moleque” Prudêncio que, uma vez alforriado, adquire um “escravo” e nele desforra a violência física e simbólica perpetrada por Brás Cubas. Nem sempre, porém, a configuração racial é explícita, como nos casos do já citado marinheiro Deolindo Venta-Grande, e do ambíguo Cândido Neves do também ambíguo conto Pai contra mãe. Conto e personagem que talvez sejam o suprassumo da ironia e da técnica machadiana quando o que está em jogo é a bastante mesclada sociedade fluminense.

Historicamente, desenvolveu-se o juízo de que Candinho seria branco e Capitão do Mato, sem que haja absolutamente nada no texto — nem seu sobrenome, “Neves”, que induziu muitos a concluírem ser ele branco, nem sua ocupação — que abone tais suposições. Além de o narrador nunca se referir a Neves como tal, o posto de Capitão do Mato era regulamentado e comissionado a certos indivíduos, alguns de ascendência africana, como o registro histórico confirma. Dado esse que levou algumas pessoas a afirmarem ser ele afrodescendente, porque, se o Capitão do Mato o era, Neves também teria que ter sido. Contudo esse não é o caso de Neves, que caça pessoas sem autorização oficial (o que não era incomum, pois uma gama de pessoas de várias “raças” e posições, como feitores, indígenas, “escravos” e os próprios “donos”, entre outros, fazia esse trabalho informal). Mais importante ainda é que não há descrição física da personagem. Ainda assim, leitores/as lhe conferem uma determinada raça, o que se explica devido a preconcepções, aplicadas à leitura, fundamentadas nos desdobramentos do século 20 em relação a questões raciais e sua percepção no século 19.

As alegações de absenteísmo de Machado de Assis em relação ao tema são decorrentes de leituras que ao mesmo tempo em que louvam sua capacidade de nunca ser explícito, como a famosa hipocrisia de Brás Cubas ou a desfaçatez de Bento Santiago (que levou leitores/as a condenarem Capitu), fazem vista grossa em relação a outras situações. A ambiguidade de Cândido Neves e seu papel “racial” no desfecho trágico de Arminda são ou apagados ou unilateralizados, e assim a complicadíssima dinâmica social trazida pela escravidão e seus legados, que Machado testemunhava e ficcionalizava como ninguém, se torna um mundo simplista e binário em que todas as pessoas brancas eram más e as afrodescendentes eram meras vítimas, completamente submissas.

Por fim, não esqueçamos que o sistema escravocrata foi orquestrado e amparado dentro da(s) lei(s) e era parte inseparável do tecido sócio-histórico daquela sociedade, como atesta uma leitura da obra de Machado livre dos pressupostos do processo de branqueamento. Por conseguinte, reduzir o problema a uma ação isolada de alguns homens-brancos-e-desalmados tão somente serve ao propósito de reforçar o mito de que a escravidão teria sido uma fortuita eventualidade que pode com facilidade ser apagada, como um deslize circunstancial cometido por algumas pessoas, uma manchinha do passado para a qual uma borrifada de água sanitária ou qualquer outro alvejante que o valha seria a solução.

Paulo Dutra

É professor na Universidade do Novo México (EUA), doutor em literatura Latino-Americana (Purdue University EUA) e pesquisador de questões raciais na obra de Machado de Assis e no rap dos Racionais MC’s. É também autor de Aversão oficial: resumida (2018, contos) e abliterações (2019, poesia). É consultor da coleção Todos os livros de Machado de Assis, a ser publicada em 2023 pela Todavia com apoio do Itaú Cultural.

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