Marcas de um Brasil interiorano

Novo romance de Edney Silvestre, com extravagante composição gráfica, acompanha a trajetória de quatro mulheres em meio aos duros valores do século 19
Edney Silvestre, autor de “Amores improváveis”
01/05/2022

Quem não se lembra da polêmica que o Jabuti criou ao premiar como livro do ano, em 2010, Leite derramado, de Chico Buarque, e não o próprio vencedor na categoria romance: Se eu fechar os olhos, de Edney Silvestre? Eram dois romances, duas visões diferentes do Brasil e muita ideologia marcando a premiação — pela eleição iminente de Dilma Rousseff dias depois. As editoras de ambos consideraram gravíssimo o episódio e se indispuseram uma contra a outra e ambas contra o Jabuti.

Mas foi bom para Silvestre, que levou seu primeiro romance a best-seller. Muito lida até hoje, a obra fala de homofobia, racismo, crimes e política brasileira num período histórico determinado — o que harmoniza tematicamente com Amores improváveis (2021). Desde então, o estilo se aperfeiçoou — com frases entrecortadas, virguladas e longas, que causam inquietação positiva no leitor. E neste romance, com capítulos muito curtos, o ritmo sintático peculiar faz ampliar cenas e narração. Foi um bom ganho na obra de Silvestre:

Ao embarcarem em Cagliari para uma temporada de trabalho de três anos na América do Sul, com a roupa do corpo e mais os poucos pertences num único baú de couro, ao lado de outros sardos, em seguida juntando-se a genoveses e sicilianos no porto de Nápoles rumo ao outro lado do mundo, Vincenzo e Concetta, agora Vivacqua, não poderiam imaginar suas vidas entrelaçadas à do rapazinho nomeado oito anos antes como Felício Theodoro, já então devida e definitivamente transferido para o Sitio Santa Zita.

Como em obra anterior, Edney fixa-se no Brasil interiorano (aqui mineiro) e analisa a vida adolescente com seus primeiros amores para mostrar a transformação de uma sociedade semirrural, de fim de século, que, marcada por duros valores, se vê modernizada pela proximidade do século 20. 

Amores
O breve romance está concentrado em temáticas que, embora já conheçamos bem — do século 19, escravista, ao 20, republicano, com imigração europeia como força de trabalho, mistura de línguas, valores, culinária e moralismos, sobretudo italianos —, são tratadas aqui com concisão e firmeza narrativa. Diz o autor que fez muitas pesquisas.

Muitas obras entre nós falam da imigração italiana, árabe, japonesa, judia, húngara, alemã — algumas delas inesquecíveis. A qualidade deste texto, porém, é tentar valorizar algo novo a partir dos amores femininos (não feministas) de sotaque italiano porém já tão brasileiros, numa cultura miscigenada que se ampliou a passos largos.

A narrativa é dividida em capítulos, em geral de uma página, introduzidos por fotos e imagens escolhidas pela designer do livro, cujo trabalho o autor agradece.

Silvestre traz um casal de italianos sardos que imigra no fim do século 19 para o interior de Minas, onde, como tantos outros, foi tratado sob os vícios da escravidão. E como outros tantos, o casal encontraria o caminho de subsistência em outro local, num armazém de secos e molhados, na fictícia cidade de Ourinho. Ali criarão as quatro filhas (duas gêmeas ao meio da prole), protagonistas da obra: são elas que vivem seus amores improváveis — que o autor define, ao fim da obra, quando afirma que “a primeira pessoa a quem associei as palavras improvável e amor

era uma voluptuosa mulher italiana, que esperava o amante, cidadão casado e pai de família, com a porta aberta altas horas da noite. Quando saí de lá, já adolescente, ela e o senhor O. provavelmente continuavam a se ver pelas madrugadas, num improvável amor estável e satisfatório (…).

Amores improváveis são ilícitos, ocultos, desprovidos de senso moral ou limites. Mesmo assim, seriam intensos ou longos. A epígrafe de Gabriele d’Annunzio reforça ao leitor essa definição:

Nossa vida é uma obra mágica, que escapa ao reflexo da razão e mais rica se torna quanto mais dela se afasta, abraça o oculto e vai contra a ordem aparente das leis.

Sob moral e ordem (só) aparentes, o interior do Brasil vai se modernizando. Porém, num trecho marcante da obra, subsistem aleivosias e a devassidão sexual dos padres no interior do país, com seus escravos, e sob a vista grossa dos moradores, protegidos pela submissão absurda dos atingidos nesse cenário.

Casal improvável
O protagonista — por quem se apaixonará a primogênita das meninas, Emiliana — é Felício, órfão, cafuzo escuro, trazido para um sítio da paróquia onde cria porcos e que, mesmo tão jovem, assumirá perante a cidade a paternidade dos filhos que o padre vinha gerando com Dozinha, filha adolescente da zeladora silenciosa da paróquia. Um casamento aparente. Esse sórdido mundo que conhecemos desde Machado e Lima Barreto se torna forte na obra. Emiliana, destinada pela tradição a se manter solteira “para cuidar da casa e dos pais”, começa a compreender na adolescência o desejo sexual a partir de uma pungente analogia ao conhecer o jovem: “A pele desse moço tem cor de jabuticaba”. Ou, na bela imagem do narrador,

O fruto mordiscado de leve para a casca espessa se abrir e soltar entre os dentes e a língua o líquido grosso de um caroço rijo, envolto em macia polpa branca, de saber doce, mas não muito.

Será este um amor improvável. O negro Felício, criador de porcos, casado e pai, um dia não mais desviará o olhar da moça loira. Senti falta de mais foco neste amor erotizado, tão silencioso, tão intenso. Esses amantes, afinal, são o produto mais desventurado de suas prisões sociais. Ele, pai de filhos que nunca teve, e ela, apenas a tia, estão brutalmente resignados a seus papéis numa sociedade hipócrita. Só uma vez por ano nascem as jabuticabas, e Emiliana, que tanto trepara em árvores brasileiras para colher o fruto, deixará a adolescência para se esconder nesse amor.

Outros amores dividem a obra e a família. As gêmeas encontraram (como manda o figurino) em dois engenheiros italianos, aqui a trabalho, os noivos para os quais a tradição rigorosa sorria. Um dos casais iria a Manaus (pela construção da Madeira-Mamoré), outro a São Paulo (crescendo como metrópole). E as gêmeas, apaixonadas, e no papel de um casamento italiano, treinavam com a mãe a culinária das regiões italianas, que agregariam ao enxoval.

Entretanto, num amor improvável, um dos noivos foge com a irmã mais nova, Fortunata, deixando a irmã enlutada e destruída. A informação do casamento civil deste casal (fuga moralizada, portanto) e a consequente punição desta moça nos pesam pela certeza de que as convenções morais italo-brasileiras vigem muito mais que a libertação de uma mulher em busca do próprio destino — que nem as sofridas cartas à família caçula conseguiram minimizar. É uma boa narrativa, que teria fôlego para ser mais longa.

Composição gráfica
Quanto à composição gráfica da obra, em capa dura e em cores, elogiada por resenhistas e pelo autor, me parece gratuita. Para que este texto seja também um “objeto” estético? Ora, o texto enxuto, mas firme, não precisava de tais enfeites. Há quase uma inversão: um capítulo para cada imagem, fotos ou ilustrações (várias sobejamente conhecidas nos acervos do país — Rugendas, Marc Ferrez, Otto Hees —, alugadas em bancos de imagens).

Não, a iconografia não traz “harmonia e composição”; nada agrega à história nem tece a imaginação de um leitor exigente. As imagens são óbvias e ingênuas: quando se fala da pele cor de jabuticaba, a imagem é a própria fruta; quando se fala em noivado, o leitor vê duas alianças; quando se fala em estradas de ferro, lá está um trem; quando se fala dos belos cabelos das irmãs, mostra-se uma fivela antiga. Isso é ruim. É assim que se destroem as metáforas e se emperra um bom texto no plano denotativo.

Houve quem dissesse que se aplicou aqui a “écfrase” — recurso retórico no qual uma arte se relaciona com outra para definir forma e essência. Não. Estes trechos da história do Brasil, insisto, sobrevivem sem adereços e para isso serve a literatura. O livro sem elas é curto demais? Que o autor o faça crescer, como parte do interesse pelo Brasil e por brasileiros. E como o livro não é autoficção, me atrevo dizer: Edney Silvestre, analise menos sua obra dentro da própria obra. Fale menos sobre ela. Cabe a nós, leitores, fazer isso.

Amores improváveis
Edney Silvestre
Globo Livros
194 págs.
Edney Silvestre
Nasceu em Valença (RJ), em 1950. Tem longa trajetória no jornalismo, com destaque para sua atuação como correspondente da Rede Globo em Nova York. Dedica-se à ficção desde 2009, quando lançou Se eu fechar os olhos agora — vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura e Jabuti. O último dia da inocência (romance, 2019) e Welcome to Copacabana & outras histórias (conto, 2016) são dois de seus outros títulos publicados.
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho