🔓 Regressaremos às indulgências?

Nada é tão perigoso à democracia do que as tentativas cada vez mais agressivas nas áreas da Educação e da Cultura no desgoverno bolsonarista
Ilustração: Aline Daka
01/05/2022

Para o historiador do futuro esses anos bolsonaristas certamente provocarão incredulidade pelo sufocante grau de absurdos e inevitáveis comparações com outros períodos obscurantistas da humanidade, como se retornássemos a um passado abjeto. A incapacidade de parte significativa da população brasileira que ainda apoia o aspirante a déspota em compreender o real significado de sua política regressiva é assustadora, e somente pode ser atribuída ao secular atraso educacional e de acesso à leitura que as elites econômicas, daqui e de além-mar, impuseram à maioria do nosso povo nos últimos 500 anos. É uma história conhecida, dissecada em textos e livros por historiadores e cientistas políticos de grande respeitabilidade.

Na vida como ela é as atrocidades seguem se multiplicando pelas mãos dos representantes do desgoverno, a maior parte atingindo frontalmente os direitos humanos e as conquistas sociais lentamente arrancadas pelos movimentos sociais à ganância espoliadora de um capitalismo selvagem e sem riscos para os menos de 1% que detém, de fato, a riqueza nacional. Um enorme aparato de truculência direta, ameaças parcialmente veladas ou explícitas das forças armadas, compromissos dos estratos mais refinados dos poderes em seguir no jogo da política como se vivêssemos sempre na normalidade constitucional, acordos espúrios com forças políticas populares corrompidas, tudo isso e muitos outros indicativos fizeram e ainda fazem parte da enorme construção da frágil democracia brasileira desde a Proclamação da República no século 19.

É importante neste 2022 realçar o estratégico 15 de novembro de 1899, mais uma quartelada para muitos analistas. Apesar disso, a data continua a ser a marca simbólica da entrada do Brasil em um novo patamar de organização do Estado, com a separação da Igreja do poder político, a afirmação do estado laico e a supremacia da vontade dos cidadãos consolidada em uma Constituição Federal republicana, lei maior que deveria nos governar tendo como base os direitos e deveres estipulados por ela. A elite governante optava, naquele final de século 19, assumir a “coisa pública”, isto é, a “res publica”, expressão latina que etimologicamente explica o conceito de república. Saíamos de uma monarquia que atendia a interesses particulares e, teoricamente, entrávamos na defesa da coisa pública com a imprescindível figura do “cidadão”, ativo, participante, que opina e se faz ouvir pelos mandatários eleitos e rotativos no poder de Estado. Era um novo horizonte a se conquistar.

Dentre os muitos golpes e as incontáveis conspirações políticas, civis e militares, que sempre ocorreram no Brasil quando este novo sistema de organização da sociedade e do Estado começava a ganhar corpo e voz com consequências sensíveis — avanços nos direitos humanos, inclusão econômica, social, cultural, educacional etc. —, nada se compara ao que estamos vivenciando desde o último golpe desferido diretamente sobre a primeira mulher que havia conseguido conquistar o posto de presidente da República. Mulher no poder supremo do país, Dilma tornou-se, ela própria, um símbolo a ser derrubado pelo atraso das elites nacionais. Se o leitor tem dúvidas sobre isso, convém a leitura dos textos e documentários que demonstram o afã vil e antifeminista no processo de impedimento, ou mesmo lembrar os xingamentos de ódio sexista que a presidenta recebeu da Câmara Federal aos estádios.

Se o golpe forjado em frágeis “pedaladas fiscais” da presidenta, agora também derrubadas pelas cortes supremas, foi o prelúdio da truculência bestial do período posterior contra a Constituição Republicana, penso que nada é tão perigoso e tão regressivo a nossa democracia e à organização do Estado brasileiro do que as tentativas cada vez mais agressivas na área da Educação e da Cultura no desgoverno bolsonarista.

Articulados como objetos principais do que os protofascistas deste governo classificaram como “guerra ideológica ou guerra cultural”, os ministérios da Educação e o da Cultura estão sob ataque constante e severo da escumalha. O objetivo é um só: destruir para perverter, subverter a razão, a ciência, a impessoalidade possível na República e substituí-las pela crença de alguns, pela irracionalidade do ódio aos diferentes, pela pessoalidade dos governantes de plantão. Em uma palavra, a destruição do estado democrático e do contraditório na multidiversidade.

O MinC foi extinto e sobre suas ruínas impuseram uma secretaria de cultural instalada sob um ministério do Turismo, esdrúxula ideia do grupo dominante, mas que atende a concepção fascistoide de que a ação cultural precisa ser garroteada e monitorada com punhos fortes. E para isso acontecer é preciso colocar seus protagonistas de joelhos, fragilizados. Ministério historicamente débil na história da República, minimizado pela maioria dos presidentes, não foi tarefa difícil para o capitão aposentado colocar boçais em série para dirigir a nova secretaria encarregada da cultura, arrebentando o bom trabalho iniciado na gestão do imortal Gilberto Gil que, só para recordar, colocou a questão cultural no seu eixo contemporâneo e estratégico: a cultura como valor simbólico, como direito da cidadania e como economia.

No MEC, segundo maior orçamento da República, a questão se tornou mais complicada, mas teve igual tratamento demolidor. A sucessão de ministros alinhados com o que há de pior na contemporânea reflexão autoritária e reacionária acabou se cristalizando no último período pela invasão dos chamados “pastores” que, abrigados em suas igrejas fundamentalistas, procuraram atingir o coração daquilo que forma a cidadania pátria: a formação escolar e a exigência do ensino laico. Este último, por sua vez, baseado na pesquisa científica independente e nas melhores inteligências que a civilização humana produziu.

Poderíamos dizer aqui, se olharmos de maneira macro a origem do universo religioso desses falsos profetas bolsonaristas, que eles traem sua própria história. Foi no século 16, mais precisamente em 1517, que Martinho Lutero inicia sua caminhada de rompimento com a Igreja Católica romana e o Papa, escreve suas 95 teses e lidera a maior cisão enfrentada pelo poder religioso hegemônico no Ocidente que exercia fortíssima influência nos Estados reais e oligárquicos naquele período. Importante lembrar que foi graças aos instrumentos de desenvolvimento tecnológico que permitiram a reprodutibilidade de textos impressos com a invenção da máquina de impressão de tipos móveis por Johannes Gutenberg, em 1430, que Lutero pôde fazer circular sua tradução da Bíblia do latim para o alemão, popularizando o texto e fazendo sua leitura ser possível sem a intermediação dos religiosos.

Toda essa revolução religiosa, tecnológica, cultural e educacional contribuiu sobremaneira para as modernas e contemporâneas concepções de Estado e de República em suas inúmeras teorias, conceitos e práticas. E seus reflexos são perceptíveis nas políticas públicas pelo menos desde a Revolução Francesa e o auge da Modernidade. Toda essa herança cultural foi deliberadamente descartada pelo ex-ministro pastor e seus colegas pastores travestidos de redentores populistas e que atuam, conforme denúncia em curso, sob as famosas trinta moedas que marcam a história do cristianismo de maneira vil.

De todo esse cenário hediondo, no qual o risco da extinção do ensino laico se combina com o ataque à ciência e à tecnologia, a cidadania lúcida tem o dever do combate acirrado, permanente, resiliente. Barrar o desmonte do estado laico, objetivo mais avançado desse processo embrionário que tem início na educação e na cultura, é tarefa urgente do Brasil que lê em defesa dos concidadãos que ainda não tiveram o direito à leitura assegurado. Tema, aliás, que ainda está ausente nos programas mais avançados dos postulantes em disputa nas eleições deste 2022.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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