Aos 93 anos de idade, minha madrinha, Maria da Paz Guimarães, tem covid-19. É internada. Ninguém acredita que ela possa sobreviver. Pois sobrevive. Ainda depende de um balão de oxigênio, alimenta-se só de líquidos, ou papas, mas resiste. Volta para a casa de idosos em que vive, em Campinas. Está mais distante, desligada, mas está ali.
A clínica nos adverte que deve viver por pouco tempo. Decido me apressar, tomo a estrada para Campinas e vou visitá-la. Sei que não é só uma visita, mas uma despedida. Ensaio cada palavra que quero lhe dizer. Se eu errar, não poderei mais corrigir.
No ônibus noturno que tomo no Rio de Janeiro, tento reconstituir mentalmente a mulher que encontrarei. Maria da Paz, a Didi, foi uma pessoa fundamental em minha infância. Toda noite, após o jantar, ia ao nosso apartamento para ler contos de fadas, sem os quais eu e meus irmãos não conseguíamos dormir. Eu tinha 5 anos quando ela me matriculou em um conservatório de música. Levou-me, pela primeira vez, ao cinema. Abriu-me caminhos que ninguém mais abriu.
Minha mãe, Lucy, era uma mulher muito triste. Ninguém usava essa palavra, ninguém ousava ou mesmo achava que deveria usá-la, mas era, sim, uma depressão. Cuidava de mim e de meus irmãos com zelo extremo, mas com frieza extrema também. Só muito depois, já na velhice, recuperou a ternura. Em sua tristeza contínua, se via como uma governanta exemplar. Impecável, mas inacessível.
Trabalhava, dia e noite, mas, afora as compras no mercado ou na farmácia, não saía de casa. Foi Maria da Paz quem me levou para o mundo. Tomou para si o papel de segunda mãe. Não posso deixar de pensar, apesar da dor que isso envolve, que não é qualquer um que tem duas mães.
Uma visita miserável de duas horas jamais pagará o que ela me deu. Ainda assim, preciso tentar. Não visitarei só minha madrinha, visitarei a mim mesmo e a meu passado. Tudo muito distante e cinzento. Ali, porém, se guardam minhas fundações espirituais. Ali, com Maria da Paz, depois de quase morrer durante um difícil parto, eu pela segunda vez nasci.
Encontro-a no jardim dos fundos, em sua cadeira de rodas, cochilando sob o sol. A pandemia me obriga não só a usar uma máscara especial, mas também uma larga bata branca, com mangas compridas e luvas grossas. Devo, ainda assim, me manter à distância. Sou um astronauta que desembarca em Marte.
Ela me olha perplexa. Olhos arregalados, as mãos agarradas aos braços da cadeira, como que esboçando uma fuga impossível. Treme, não sei se de emoção, ou de medo. Uma enfermeira se aproxima e a ajuda. “Didi, você tem visita, é o Zezinho.” Aos 71 anos, continuo a ser o menino para quem ela lia os contos dos irmãos Grimm.
Sem saber o que fazer diante de seu assombro, insisto: “Sou eu sim, o Zezinho”. Detenho-me. Ela continua a me encarar em silêncio. Examina-me de alto a baixo. Procura alguma coisa. Alguma prova. Depois, se vira para a enfermeira e pergunta: “Quem é esse homem?”.
A enfermeira sugere que eu tire, por alguns instantes, a máscara. Faço isso. Maria da Paz me encara em longa pausa, suspira fundo e enfim diz: “Não é ele. Eu conheço o Zezinho. Quem é esse mentiroso?”. Recolo a máscara. A enfermeira puxa uma cadeira para perto de minha madrinha. Não tão perto, mas o suficiente para que ela possa me ouvir. Sento-me.
Digo: “Será que minha voz não a convence?”. Fechando a cara, quase com uma careta, ela reclama: “Essa não é a voz do Zezinho”. Depois, olha para a enfermeira e pergunta: “Por que esse homem insiste em mentir?”. Volta a me encarar. Com a voz mais forte que consegue, pede: “Manda esse homem embora. Eu não o conheço. Eu não quero falar com ele”.
Recuo lentamente a cadeira, arrasto-a pela grama, mas não me ergo. Desvio os olhos, eu também, ensaiando um olhar casual, ou desinteressado. Também meu desinteresse não a convence. “Peça para ele sair daqui agora”, ela insiste. A enfermeira me faz um sinal para que recue ainda mais. Ergo-me e me posto alguns passos atrás, de pé, encostado a uma janela.
Estarei forçando as coisas? — me pergunto. Não será melhor, não será o correto, eu me despedir e ir embora? Mas vim de tão longe e esperava tanto. A tensão que minha madrinha traz nos olhos também denuncia não tanto uma frustração, mas uma incapacidade de encarar o insuportável. Será que ela sabe que não nos veremos mais? É a despedida que ela não suporta?
Mas não. Suas palavras são claras. É evidente que eu não sou eu. Sou um falsário, me intrometo em uma relação delicada e antiga, estrago, com minha presença, um último sonho que ela deseja guardar. De alguma forma que não posso compreender, eu a decepciono. Simplesmente por estar ali, por insistir em estar ali em um momento tão extremo, quando já não deveria estar, eu a desaponto.
“Não quero mais esse homem aqui”, ela insiste, agora furiosa. É claro que eu não sou eu. Ou, pelo menos, não sou mais eu. Acato sua decepção e recuo ainda mais. Agora puxo uma cadeira para bem longe, do outro lado do pátio, e a observo em silêncio. Uma mulher enrolada em sua manta e com a boca aberta.
Chega a hora do almoço. A governanta traz uma segunda cadeira e a acomoda na mesa, para que eu me sente. Não sei se devo fazer isso, mas a mulher insiste e então faço. Almoçamos em absoluto silêncio. Mal consigo engolir a comida. Velamos um laço que, em definitivo, se partiu. Nós nos despedimos. Só faltam as velas.
Passo ainda um pedaço da tarde, à distância, sem dizer nada, sem tentar mais nada. Ela me ignora. De vez em quando, me olha com a cara feia. Será essa a imagem que levará de mim, a de um teimoso, de um homem inoportuno, um intruso?
Chega a hora de partir. Despeço-me, mas ela não reage. Continua enfezada. No aeroporto de Viracopos, carrego a impressão dolorida de que fui grosseiro, agressivo, de que cometi um pequeno crime. Chego em casa desolado.
Poucas horas depois, recebo uma mensagem da diretora da clínica. Assim que fui embora, ela a levou de volta a seu quarto para descansar. Só então, na penumbra do quarto, tremendo, minha madrinha lhe disse: “Eu sabia que era ele. Eu sabia. Mas não aguentei dizer”. E desandou a chorar.