Poema de Heloiza Abdalla

Leia o poema "Sexto canto"
Heloiza Abdalla, autora de “Ana Flor da água da terra” Foto: Amanda Amaral
01/05/2022

Sexto canto

Discutimos profundamente o tempo durante nossos
caminhos.
Os portais da memória.
Você nos lembrou outros mundos.
Eu talvez tenha te dito os meus diários.
Eles seguem aqui enquanto escrevo.
Eu quis estar contigo desde a primeira palavra.
Fala.
Quero te escutar — mais.
Todos sabem: há um ventre: no amor mora nós.
Eu vim fazer amor por anos.
Corpo, porra! Movimento.
Palavra.
Sim, sou um ser livre.
Teu corpo terra perto do meu.
Diz: nos basta essa pedra?
Deita um pouco e sonha comigo?
Respiro. Vazio. Movimento.
Aprendi a alma habita os encontros.
Aprendi a força ali.
Trabalho nisso há anos.
Há entre nós: raiz.
Eu escutei uma semente ao longe.
Refazer o mundo.
Vamos dançar?
Ser o amor comovente que o tempo abriu?
Viver nossos pertencimentos irmãos e ir bem
devagar pela vida.
Há flores.
Nós estamos começando uma longa viagem.
O rito foi ali naquela passagem.
Agora o eclipse queima as águas.
Enquanto essa pedra espera — eu sonho teu
círculo ardente — olhos parados — tapetes — o
tempo.
Eu saí e fui me encontrar com outra de mim.
Sonhava você caminhando e me encontrando ainda
uma e outra vez.
Não vou viver o mundo sem você.
Tu não vai me esquecer.
Começou nosso encontro.
Eu recebi o presente.
Chorei. Continuei a dançar. A rua.
Falei poesia no final da noite quando o som
todavia deixou de tocar.
Falamos juntos todos os versos presos que
sabíamos.
Nossos versos presos ali fazendo festa.
Caminho.
O lenço vermelho no chão.
Ninguém parece se incomodar. Há poucos. Parecem
muitos.
Frestas.
São três da manhã de um sábado já sendo
domingo.
Eu respiro fundo quando dou pelo que aconteceu.
Uma mulher e o canto da semente.
Ali naquela fogueira com todas as outras
fogueiras vividas um pouco antes e depois
daquela viagem.
Eu cantava o canto da minha cura.
Enquanto no silêncio mais gritante ouvi uma
mulher sussurrar o poema feito loba neruda.
Sussurrou. Fitei o horizonte.
Olhou firme para mim.
Respira feito mulher na rua — nua: sente o
vento, a tarefa, o encontro.
Crua, sopra outra vez.
Não introduzir mercadorias como o faziam os
colonizadores.
Nu — teu verso livre — juta é medida.
Quando dei por mim, estava de pé.
Feito pessoa parindo o semblante a dizer casa.
Toda a sua víscera.
Ela outra vez.
Vocês me deem licença nas terras onde os povos
se dizem por seus cantos corpos poemas.
Chorei um ventre verdade.
Pra nunca mais ser cinza.
Amor. Tem uma vida real se abrindo.

Heloiza Abdalla

Nasceu em 1987, em Mogi das Cruzes (SP). Estreou na poesia com Ana Flor da água da terra (2016). O inédito aqui publicado integra o livro Sala azul vermelha, que teve sua primeira leitura pública no espaço Garganta (SP), na lua cheia do mês de março deste ano.

Rascunho