A literatura deve a Isaac Bashevis Singer, judeu americano nascido na Polônia, duas grandes contribuições. A primeira, sua estupenda obra ficcional, toda ela escrita em iídiche e cuja matéria-prima foram as histórias ouvidas na infância, baseadas na tradição e no folclore de seu povo. A segunda, as reflexões sobre seu ofício, a começar pelo famoso decálogo, parte de seu discurso de agraciado na entrega do Prêmio Nobel de Literatura em dezembro de 1978, quando enumera as principais razões de ter começado a escrever para crianças:
1) As crianças leem livros, não resenhas
2) As crianças não leem para encontrar sua identidade
3) Elas não leem para se livrar de culpa, para matar a sede de insurreição ou para sair da alienação
4) Elas não usam psicologia
5) Elas detestam sociologia
6) Elas não tentam entender Kafka ou Finnegans wake
7) Elas ainda acreditam em Deus, família, anjos, diabo, bruxas, demônios, lógica, claridade, pontuação e outras coisas obsoletas
8) Elas gostam de histórias interessantes, não de comentários, guias ou notas de rodapé
9) Quando um livro é chato, elas bocejam abertamente, sem qualquer vergonha ou receio
10) Elas não esperam que seu bem-amado escritor redima a humanidade. Jovens que são, elas sabem que isso não está em seu poder. Apenas os adultos têm essas ilusões infantis
Registrada há mais de 40 anos, a lição de Singer tem se mostrado a cada dia mais oportuna: nunca houve tanto despudor em aclamar valores extraliterários numa obra ficcional. E não se fala aqui de situações como a do próprio Nobel de Literatura, o mais importante em nível mundial, em que a láurea pretende abarcar muito além de uma excelência literária inerente à obra agraciada. Fala-se de obras que devam seu reconhecimento menos a suas virtudes como obra de ficção e mais ao fato de fazerem uma importante denúncia, ou um importante resgate histórico, ou ainda por terem sido escritas por alguém pertencente a uma minoria.
Para sorte do público leitor, há autores que não abandonam o princípio de que uma história bem contada é um universo completo de informação e emoção, seguindo outra máxima de Singer, a de que “a literatura genuína informa enquanto entretém”.
Perfeito domínio
Na Glasgow dos anos 1980, quando Margaret Thatcher impõe ao Reino Unido uma política de austeridade que provoca desemprego em massa, uma mulher linda e mercurial é seduzida pelo marido mulherengo com a ideia de se mudarem do apartamento dos pais dela para uma casa na periferia, e é abandonada com seus filhos tão logo chegam ao novo endereço, um bairro operário pobre onde vivem famílias de mineiros que tentam sobreviver depois de terem perdido o emprego. O casamento de Agnes, a grande personagem de A história de Shuggie Bain, havia muito já estava deteriorado, e ela compensava suas frustrações na bebida. Depois do último baque, o alcoolismo passa a dominar sua vida.
A filha mais velha logo dá um jeito de fugir dali. O filho do meio, um adolescente com talento para o desenho, não consegue abandonar a mãe e o irmão para seguir sua vocação em outro lugar melhor do que aquele fim de mundo onde foram despejados. O caçula Shuggie Bain, um garoto de seis anos com modos afeminados, começa a tatear o caminho do descobrimento de sua sexualidade da forma mais violenta, ao virar alvo constante do bullying de uma vizinhança hostil que a pobreza torna ainda mais rude.
Mais não é possível adiantar sob pena de tirar a surpresa do leitor, e muita coisa acontece. Vários personagens entram, têm sua participação de destaque num determinado momento, e depois saem de cena, enquanto Agnes e Shuggie Bain, a mãe alcoólatra e o filho pequeno que dela cuida, permanecem até o fim nas posições principais.
O romance de estreia do escocês Douglas Stuart impôs a ele vários desafios. O maior deles, talvez, tenha sido o último: a recusa em série por cerca de 30 editoras antes de ser publicado pela inglesa Picador e merecer o Booker Prize em 2020, um dos mais prestigiosos prêmios literários do planeta. Quando passou a frequentar a lista de best-sellers do The New York Times, confirmou-se aquela combinação de sucesso de crítica e público que é o sonho dourado de todo autor.
A começar pelo argumento, porém, a história já era um campo minado cujas armadilhas Stuart soube desarmar com habilidade rara a um estreante. Entendeu de imediato os riscos de se lançar numa autobiografia, ainda que o romance esteja baseado em fatos reais da vida do autor, que é gay e viveu na pele o drama de ter a mãe alcoólatra no mesmo cenário do livro. Preferiu criar personagens fictícios para retratar a própria vida, estabelecendo assim uma distância saudável para não ceder à tentação do sentimentalismo nem se intrometer de forma inconveniente na trama. Esse é um equilíbrio sutil do qual Stuart demonstra ter perfeito domínio desde o primeiro parágrafo, ao deixar claro que sua intenção é contar uma história, sabe muito bem onde pisa e aonde quer chegar e estrutura a narrativa de modo a torná-la o mais interessante possível ao leitor.
Argumento sólido
Assim como Singer, Stuart também pertence a uma minoria, mas não se vale dessa condição para levantar bandeiras. A trajetória de seu personagem mirim na descoberta da homossexualidade, enquanto sofre todo tipo de abuso e vive o terrível drama com a mãe bêbada, tinha tudo para descambar no libelo: o quanto sua orientação sexual deve à desestruturação familiar e ao meio degradado onde vive. Outra vez Stuart demonstra perícia ao abordar esse tema, porque, à época e no cenário em que transcorre o romance, a convicção geral era justamente a de que fatores externos seriam determinantes na orientação sexual do indivíduo. Embora tal convicção seja expressa em vários momentos, a neutralidade do narrador consegue colocá-la na perspectiva exata — e, com ela, fugir de quatro ou cinco itens do decálogo de Singer. Além disso, a volta aos anos 1980 leva a um inequívoco anacronismo, e tudo se ajeita à perfeição na cabeça do leitor contemporâneo.
Outro aspecto que tem chamado a atenção para A história de Shuggie Bain é o drama do alcoolismo feminino. Não só Agnes, outras mulheres em seu entorno miserável também se embebedam como forma de escapar da vida desgraçada que levam. Aqui, mais uma vez, temos uma questão social importante abordada sem nenhum tom panfletário. O movimento principal do romance de Stuart continua sendo a relação mãe e filho, em que a mãe é uma bêbada (fascinante, do ponto de vista literário) e o filho, uma criança desamparada que tenta salvá-la, e todo o resto vem a serviço desse argumento.
É louvável que Stuart tenha conseguido driblar tantos percalços — e esta afirmação chega a ser supérflua dado o sucesso alcançado por sua obra. Um pequeno vício, contudo, ele não conseguiu controlar: a prolixidade. Ainda que a obra não ceda ao sentimentalismo, ela se arrasta por mais de 500 páginas sem história suficiente para sustentar o frescor da narrativa. Poderia ser mais concisa e produziria um efeito ainda mais forte no leitor. Em literatura, como se sabe, o menos é sempre mais. E essa não é necessariamente uma das lições de Singer.