Vidas com um único caminho

Os contos de “Antologia pessoal”, de Eric Nepomuceno, trazem o canto da miséria, solidão e dores
Eric Nepomuceno, autor de “Antologia pessoal”
01/05/2009

Melancolia é um sentimento latino; mais que isso, luso-hispânico. E floresceu em solo americano com tanta força que é impossível olhar a América Latina sem sentir sua força. Tudo está ali, desde sempre, atávico, ancestral. Alguns dos mais antigos historiadores falam em três tristes raças, quando citam os povos fundadores do Brasil. Uma prova de que não estamos tão distantes dos outros latino-americanos, como tenta provar nossa vã elite intelectual.

A arte do contista Eric Nepomuceno é a concretização viva de outra clara ponte entre nós e o universo que nos cerca. A leitura de sua Antologia pessoal pode animar os mais apressados a falar do mais latino de nossos autores. A verdade, no entanto, é que Nepomuceno consegue desvendar nossos sentimentos mais íntimos e avoengos, como a melancolia, o aparente conformismo, a necessidade de preservar nossas crenças políticas e religiosas. Somos, como os personagens do autor, profundamente marcados pelas lendas reais de nosso passado. E isso nos dói e nos impulsiona.

No entanto, logo de início, é bom alertar para o maior de todos os equívocos que acomete o leitor mais desatento. Eric Nepomuceno é hoje indiscutivelmente um dos maiores conhecedores brasileiros da América Latina. Criou fama como tradutor de autores como Gabriel García Márquez, Antonio Skármeta, Julio Cortázar. O fato tem feito muitos analistas apontarem aí a gênese de sua latinidade. Equívoco. A personalidade e as certezas de seu de texto não são construídas de ouvida, pela leitura de outros cantos. A originalidade nasce mesmo de um sentimento maior, de uma identificação profunda com o mundo de misérias e dores instalado entre o Atlântico e o Pacífico, na tira de terra onde espanhóis e portugueses deram vazão aos respectivos esplendores.

Um dia se foi embora o esplendor e ficou a realidade. E neste fio de verdades se apóia toda literatura de Eric Nepomuceno. Seu canto é o da miséria, da solidão, das dores. “Parece um milagre poder desfrutar tanto histórias que terminam tão mal”, escreveu Gabriel García Márquez. E aí está a chave destes contos. O fatalismo que os cerca vem das profundezas da Península Ibérica e isso pode fazer de Nepomuceno o mais hispânico de nossos autores, mas por ter em si esta verdade hispânica, que de sorte, é também portuguesa.

Consciência formada
Há um crescimento de maturidade na organização do volume. Melhor dizendo, o livro começa com textos narrados ou vividos por crianças para logo se apegar a homens e mulheres amadurecidos. Todos vivem em um continente onde todos já nascem com a consciência formada, para o bem ou para o mal. Tudo é velho, até as crianças. E aí volta o ar melancólico, o clima adensado pela poeira e o calor, ou pelo frio mais aterrador, matando qualquer esperança de um final feliz, afinal a fatalidade da vida é se prender às tragédias, assim aprendemos no berço, no útero materno.

Há ainda em Nepomuceno uma curiosa maneira de tratar os personagens. Vários contos são narrados na primeira pessoa do singular e seus narradores simplesmente não são nominados, como muitos outros personagens são identificados apenas pela profissão ou por uma característica física ou de alguma outra forma. Este anonimato, esta impessoalidade, parece mostrar a unificação do universo narrativo. Todos são iguais e igualmente despersonalizados pois existe uma força maior, a fatalidade cultural que os cerca.

A concentração de todos estes homens, de todas estas mulheres num único bolo se mede também, e de maneira oposta, pela pluralidade de paisagens. Os cenários vão se modificando e se completando a partir das necessidades do autor. Sabe-se que toda ambientação está concentrada em países latinos ou mesmo em outros universos igualmente marcados pela melancolia e o fatalismo. Eric Nepomuceno fala, enfim, de mundos excluídos. O gênio do jazz que se mata parece viver no Sul dos Estados Unidos, mas seu fatalismo, sua incapacidade de fugir do destino, o insere no mundo dos que vivem para cumprir um desígnio, uma vida de caminho único.

Mesmo na rebelião o fatalismo é quem dá as cartas. O curioso conto A promessa aponta claramente a dimensão da fatalidade nessa gente. Dois homens se determinam a ir a pé a Jerusalém. Fazem a viagem, sentem todas as suas durezas e todas as suas delícias sem sequer saírem do quarto. E pelo resto da vida guardam o silêncio da distância. É um conto primoroso onde, como queria Cortázar, o leitor é vencido por nocaute e se deixa convencer da proximidade de um mundo construído para se fazer ímpar, único, culturalmente forte e vivo.

Naturalmente que logo se encontrarão por este caminho resquícios, ecos do realismo mágico, o estilo narrativo que fez explodir as atenções mundiais para a América Latina, isso nos anos 1970, sobretudo. No entanto, Nepomuceno se livra da marca pela personalidade de seu texto. Há uma originalidade pouco comum de se encontrar, sobretudo nos novos narradores do Brasil. Ele consegue se inserir num contexto continental, universal e até cosmopolita, sem negar sua motivação primária, que outra não é senão encontrar as explicações para o que se passa deste lado de cá do Atlântico, dessa margem de cá do Pacífico.

E faz este caminho usando a palavra com a função exata que ela tem: dizer algo, como alertava Graciliano Ramos. Mesmo quando se apega ao sentimentalismo tão latino, preserva o leitor de uma melosidade desnecessária. Tudo é dito com rigor e precisão “Descobri, enfim, que a elegância pode ser, mais do que qualquer outra coisa, a melhor defesa, o disfarce mais eficaz para a decadência”, escreve. É este caminhar constante para a decadência que desperta a arte do escritor Eric Nepomuceno.

Enfim, estamos diante da redescoberta de um contista com forte personalidade. Uma coisa rara em nossa literatura.

Que nessa esteira venha a redescoberta de outros personalistas, como Hermilo Borba Filho, Dalcídio Jurandir e tantos mais.

Antologia pessoal
Eric Nepomuceno
Record
352 págs.
Eric Nepomuceno (1948)
Tem contos publicados na Holanda, Argentina, México, França, Chile, Cuba e Nicarágua. É autor de livros de não-ficção. Traduziu mais de 50 livros de autores de idioma espanhol, como Eduardo Galeano, Juan Rulfo, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar e Juan Gelman. Ganhou três vezes o Prêmio Jabuti. Em 1993 obteve, no México, o Prêmio Plural de contos.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho