No país dos bacharéis costuma-se ler muito pouco as leis que regulam as nossas vidas. Esse costume se aplica desde o desconhecimento da lei maior — a Constituição — até aquelas que são estratégicas e fundamentais para o desenvolvimento sustentável do país. A terceirização deste dever cidadão já se revelou desde a independência. O costume de delegar aos profissionais do direito o entendimento de nossas legislações segue impossibilitando uma consciência clara dos direitos e deveres de todos que vivemos nesta sociedade. E se dependemos apenas de terceiros para defender nossos direitos, dificilmente seremos uma sociedade civil presente e firme em suas reivindicações.
Como já demonstrei na coluna de fevereiro, qualquer política responsável com a escala de abrangência do Estado, isto é, que atinja a todos os cidadãos, só é aplicável se os governos contarem com leis que permitam as ações e recursos financeiros e humanos para sustentá-las. Conquistar uma lei não é um ato apenas simbólico, mas obter a possibilidade de realizar uma política pública atuante e verdadeira.
Por essas razões gerais, e com o intuito de colaborar para a compreensão de uma lei que interessa à cidadania, particularmente a escritores e leitores, é que comentarei os pontos que considero centrais na Lei da Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), promulgada há quase quatro anos sob o número 13.696/2018 e até hoje não implementada.
Me dirijo principalmente aos milhares de militantes que são formadores de leitores nas múltiplas cadeias do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas. E aqui destaco o primeiro ponto que considero central na PNLE: esta lei é a síntese, dialeticamente falando, do que conseguimos construir nos últimos 30 anos enquanto sociedade civil e seus saberes populares e acadêmicos, ditados pela prática e estudos cotidianos voltados para formar leitores e criar programas e instituições promotoras da leitura. Alicerçados nos que nos antecederam na educação e na cultura desde os anos 1930, a lei 13.696 expressa todos os ensinamentos, objetivos, diretrizes e saberes acumulados desde o Proler (Programa Nacional de Incentivo à Leitura) de 1992 até a experiência mais recente, o Plano Nacional de Livro e Leitura (PNLL), instituído em 2006. Sua observância é a continuidade objetiva dessas grandes iniciativas que foram as duas únicas políticas públicas de formação de leitores em escala de Estado que lograram êxitos materialmente possíveis de contabilizar, conforme pesquisas diversas realizadas nas três últimas décadas.
É imperioso reconhecer, e lutar pela observância, do que expressa o artigo 1º. e seu parágrafo único: A instituição da PNLE significa uma estratégia permanente de promoção do livro, da leitura, da escrita, da literatura e das bibliotecas de acesso público no Brasil. Isto significa que todos os governos federais eleitos se obrigam a observar esta estratégia imposta por força de lei, delimitada pelos artigos e parágrafos no texto legal. E a primeira estratégia obrigatória está no parágrafo único do artigo 1º.: Estado e Sociedade devem organizar-se e atuarem juntos pela implementação da PNLE. É mandatária a determinação de que todos os entes federativos são responsáveis por essa estratégia permanente de formação de leitores e a eles devem se juntar a sociedade civil e as instituições privadas. Como já se afirmou centenas de vezes, a ambição de se ter um país de leitores plenos é tarefa gigantesca e geracional e somente a unidade nacional em torno do tema poderá atingir este objetivo. Com a lei da PNLE estamos amparados para essa defesa e para convocar iniciativas de todas as forças da nação, isto é dar protagonismo também à sociedade.
O reconhecimento da leitura e da escrita como um direito aparece aqui de forma explícita e vinculada à possibilidade de os brasileiros obterem condições plenas de cidadania e exercer uma vida digna que contribua para a construção de uma sociedade mais justa. Ou seja, no âmbito do Artigo 2º., temos legalmente pela primeira vez a leitura e a escrita compreendidas na dimensão contemporânea de direito humano. Este reconhecimento retira o ato de ler e escrever das muitas considerações de que são atos supérfluos, complementares e que podem ser subordinados ou mesmo dispensados frente a outras ações e programas de governo. Afirmar que é um direito humano ratifica e amplia a centralidade das políticas públicas voltadas para a leitura e a escrita, equiparando-as aos direitos humanos já absorvidos pela maioria da sociedade como o direito à saúde, à educação, ao transporte, à habitação digna, entre outros.
Outro aspecto central na lei da PNLE é unificar toda a cadeia criativa, produtiva, distributiva e mediadora do livro como “integrantes fundamentais e dinamizadoras da economia criativa”. Este inciso V do artigo 2º. reúne em duas linhas dois pontos fundamentais: o primeiro explicita que a leitura e a escrita se expressam pela ação de muitos atores e que é da unidade deles que poderemos obter diretrizes e apoio suficiente para avançarmos; o segundo é introduzir a ideia de que também essa cadeia faz parte da economia brasileira, gerando riquezas, empregos e desenvolvimento. Seria ocioso relembrar aqui números e tabelas que demonstram a contribuição do setor à economia, mas é bom lembrar que no imaginário governamental e de boa parte da sociedade se considera que escrever, editar, distribuir e investir em bibliotecas e mediação de leitura e escrita nada tem a ver com a economia, constituindo-se em atividade lúdica e para poucos.
Não menos relevante é o Artigo 3º. e seus incisos onde encontraremos os eixos centrais que foram estabelecidos como absolutamente necessários à boa política pública de formação de leitores e expressos no PNLL em 2006: Democratizar o acesso ao livro e à leitura em todos os seus suportes, tendo como principal veículo as bibliotecas de acesso público; o fomento à formação de mediadores de leitura e o fortalecimento de ações de estímulo à leitura, entendendo que sem seres humanos qualificados que auxiliem outros seres humanos a alcançar a leitura, estimulando-os a ler e escrever, não adiantará termos bibliotecas, livrarias, etc.; a valorização social e simbólica da leitura e da escrita é outro objetivo exaltado neste trecho da lei, compreendendo que a construção de um país de leitores também necessita de que este país valorize simbólica e institucionalmente essa construção; aliados aos três primeiros objetivos da lei e eixos do PNLL, o inciso IV reafirma o “desenvolvimento da economia do livro como estímulo à produção intelectual e ao fortalecimento da economia nacional” e isto é ponto fundamental para se reconhecer e estimular efetivamente o lugar da economia do livro no desenvolvimento sustentável e sua participação nas estratégias políticas para exercer o conceito de soft power junto à comunidade das nações.
Ressalto nos demais objetivos deste artigo 3º. o que estabelecem para o fortalecimento e qualificação de todos os espaços públicos atentos à formação de leitores, como as bibliotecas, as instituições culturais, educacionais e de pesquisa, assim como a formação cultural e o incentivo aos estados e municípios em adotarem seus planos estaduais e municipais de leitura voltados para a realidade de seus territórios.
Finalmente, o artigo 4º. institui a obrigatoriedade de que todos esses objetivos da PNLE se efetivem em programas e ações planejadas em Planos Nacionais de Livro e Leitura decenais, criando objetivos, recursos e estruturas que conquistem em dez anos as metas propostas para o período. A lei 13.696 cria, ela própria, seu instrumento de aplicação e determina o envolvimento do Estado e da Sociedade Civil para formular e executar os PNLL.
A lei 13.696 reconhece o direito à leitura e imprime estratégias e objetivos para formarmos um país de leitores. É um marco legal e um farol para todos os movimentos democráticos neste país. Que um próximo governo tenha a decência de implementar a Lei da PNLE é o que todos esperamos!