Tudo aconteceu na noite de 21 de abril de 1985 — algumas horas depois da morte do presidente Tancredo Neves. Já era tarde da noite. Na saída da redação, um amigo, Aluisio Maranhão, me ofereceu uma carona. Estava de carro. Passaria por Botafogo, bairro onde eu morava, mas estava atrasado para um compromisso em família. Teria que me deixar na praia. Aceitei.
Eu morava na Raul Fernandes, uma rua encostada a uma pedreira, logo depois do Hospital Samaritano. Teria que caminhar meia dúzia de quadras, mas achei que seria até bom, porque eu precisava relaxar e respirar. Na calçada da praia, nos despedimos. Mal entrei na primeira travessa, a Visconde de Ouro Preto, me surpreendi com as ruas desertas. O país estava de luto, todos se recolhiam dentro de casa.
Não me importei. Ao contrário, tive a sensação de que assim, caminhando pelas ruas escuras e vazias, eu poderia, enfim, descontrair. Trabalhara por muitas horas seguidas. Foi um dia angustiante. A morte de Tancredo, que abria um futuro incerto para o país, me abalara.
Caminhei sem pressa. Três quadras à frente, em uma rua mais estreita alinhada a um longo muro, um carro parou ao meu lado. Saltaram três rapazes, jovens, bem alimentados e bem-vestidos. Sem pressa, sorridentes, como se aproveitassem a noite, vieram em minha direção.
O preconceito me fez acreditar que três rapazes da classe média, remediados como eu mesmo, não eram um perigo. Custei a entender que eles estavam armados. O primeiro apontou o revólver nas minhas costas. Senti a frieza do aço, como gelo. O segundo, postou-se à minha frente e fincou a arma em meu peito. Talvez no coração. O terceiro, encostou seu revólver na minha testa. Tinham me crucificado.
Não precisaram dizer nada. E nada disseram. Minha reação também foi silenciosa. Um silêncio lúgubre se abatia sobre o Brasil e, agora, ele se sintetizava naquela cena de rua. Eu era, talvez, o protagonista. Na verdade, era a vítima.
Lembro que pensei que seria estranho morrer na mesma noite em que Tancredo morreu. Ele em um hospital, ligado a máquinas. Eu, como um indigente, no meio da rua. Devia haver algum significado nisso. Esse paralelo queria dizer alguma coisa.
Não queria dizer nada. Tudo o que eu via eram os olhos vermelhos do rapaz que apontava o revólver para minha cabeça. Entendi que os três estavam drogados. Talvez fora de si. Não haveria salvação.
O garoto que mantinha a arma contra as minhas costas tremia muito. Eu sentia a trepidação de sua mão, o pânico que o devastava. Ela me chegava às costelas e se parecia com um choque. Sentia também que os rapazes estavam indecisos. Que estavam desesperados. Parece que não tinham um plano. Mas de nada me serviu entender isso.
“Passe essa bolsa”, um deles me disse. Entreguei minha bolsa com um gesto lento, mas ele não a abriu, só a abraçou. Pensei em um menino agarrado a seu ursinho. O segundo, atabalhoado, remexia em meus bolsos. Depois examinou meus sapatos, que eram bem velhos. Ainda me apalpou com cuidado a cintura. “Não diga nada”, ordenou. Será que ele, afogado em seu medo, não ouvia o meu silêncio?
Passaram a discutir entre si. “O que fazemos com esse cara?” — um deles perguntou. O que estava atrás de mim disse: “Não quero me envolver com mortes”. O terceiro, ríspido, mais tenso ainda, emendou: “Vocês pretendem largá-lo no meio da rua para que ele chame a polícia?”.
Não se entendiam. Não tinham uma estratégia. Pensei que pudessem, até mesmo, pedir minha opinião. Se pedissem, o que eu diria? “Juro que os perdoarei. Juro que esquecerei de vocês.” Enquanto eu pensava nessa tolice, tonto com meus próprios pensamentos, um deles lembrou: “Estamos perdidos, ele já viu nossas caras”.
Naquele momento, eu tive certeza de que ia morrer. Sim, eles me matariam, não porque quisessem, ou porque tivessem planejado isso, mas porque não tinham escolha. Um deles ainda disse: “Por que não o sequestramos?”. Outro o emendou: “E vamos carregá-lo nas costas como um entulho?”.
Eu virara a noite acompanhando a agonia de Tancredo. Antes de ser destruído, já estava destruído. Não devia mesmo valer grande coisa. Nem discutiam mais. Continuavam só a tremer. E eu, em uma inversão incompreensível, fui tomado por uma absurda lucidez.
Olhei, então, para meu pulso e vi o relógio que, dois meses antes, eu ganhara de aniversário. Um presente de minha irmã mais velha, Leyla. Um relógio caro, talvez ainda mais vistoso do que caro. Nervosos, eles não o tinham visto. Juntei o que me restava de forças, tirei uma serenidade estoica não sei de onde e perguntei: “Vem cá, vocês não vão levar meu relógio também?”.
Congelaram. Os três olhavam para meu pulso. Inertes. Até que o garoto da frente largou seu revólver na cintura e pegou o relógio. Examinou-o com cuidado. Depois gritou: “Somos uns babacas, íamos deixar o que vale mais”. Meteu o relógio no bolso da calça e voltou a apontar a arma em meu peito.
O garoto que estava às minhas costas disse: “Aí está, o cara é boa gente, não podemos matá-lo”. O que tinha o revólver na minha cabeça concordou: “Sim, ele foi parceiro. Não se mata um parceiro”. Eu estava atônito. Lembrei então que, em grego, a atonia significa inércia, mas também relaxamento. Sim, eu relaxava. E — absurdo maior — eu me sentia aceito. Não é sempre que encontramos parceiros pelas ruas.
Mandaram que eu fosse até o muro e ali ficasse, de cara contra a parede. “Você conta até cem. Devagar, bem devagar. Depois pode seguir seu caminho.” Ouvi as portas do carro baterem e o motor roncar. Se foram. E ali fiquei eu, petrificado diante do muro, na esperança de alguém passasse e me abraçasse.
Contei não até cem, mas até mil. Sim, até mil. Só então ousei me virar e caminhar em direção ao meu prédio. Só naquele momento, minhas pernas passaram a tremer. Tremiam muito, o corpo todo se agitava, e eu não conseguia mais andar.
Eu me salvara. O relógio que Leyla me deu me salvou. Minha ideia de falar do relógio me salvou. Talvez nada disso. Pensei, de repente, em A trama celeste, o livro de Bioy Casares. Sim, sou descrente, declaro-me ateu, sou cético. Mas alguma coisa muito acima de mim agira em meu lugar.