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Tão nosso, tão brasileiro, o caso do cavalo. Tão universal e tão brasileiro!
É verdade que poderia ser o caso do elefante, ou do camelo, ou do avestruz. O animal não importa tanto. Ou importa?
Elefantes, camelos e avestruzes também são usados como cavalgadura. Mas hoje o cavalo é mais vulgar, menos exótico. Ele pertence a todos os continentes, a todas as culturas. Então fica sendo o caso do cavalo.
2
Que diamante multifacetado, a astúcia!
De quantos ângulos a esperteza pode ser observada, admirada, fotografada? Quantas versões a mesma malandragem pode apresentar?
O caso do cavalo, por exemplo. Quem não conhece?
Em Porto Alegre juram que esse caso ocorreu bem perto, num sitiozinho a cem quilômetros da capital.
Em Manaus não é diferente. Também lá a população garante que o caso aconteceu logo aí, numa cidadezinha às margens do Amazonas.
Em Boa Vista, São Paulo, Fortaleza… A mesma coisa. Então o caso do cavalo aconteceu no Brasil inteiro?
Aconteceu.
No Brasil inteiro. Milhares de vezes, desde que o europeu, o americano e o africano se misturaram.
As estatísticas garantem: ocorrem por minuto no país seis casos do cavalo. Isso significa que você, leitor, já participou, está participando ou em breve participará desse caso.
Como vítima ou protagonista. Você escolhe.
3
O caso do cavalo pode ser contado de muitas maneiras. Basta você digitar “caso do cavalo” no seu buscador predileto e milhares delas jorrarão de seu monitor.
Minha versão predileta é essa:
4
Havia lá para os lados de Minas (Paraná, Goiás, Macapá, você decide) um sitiante que enfrentava sérios problemas financeiros. Assim, quase sem nada pra comer, ele disse pra mulher:
— Vamos vender o Ventania (Tornado, Bucéfalo, Incitatus, você decide). Vou até o sítio do compadre Juvêncio (Jacinto, Joaquim, Genuíno, você decide) oferecer nosso cavalo.
O sitiante, muito triste, encilhou o Ventania, montou e partiu para o sítio do compadre.
É claro que Juvêncio ficou interessado na oferta e os dois logo acertaram o valor: dois mil reais. Ficou combinado que Juvêncio buscaria o cavalo em dois dias, assim que arrumasse novos arreios.
Passados dois dias, Juvêncio bateu na porta do compadre:
— Olá, compadre. Vim buscar o Ventania, conforme o combinado.
— Compadre, me desculpe, mas o Ventania morreu.
— Morreu?
— Morreu.
— Bom, sendo assim, então você me devolve o dinheiro.
— Pois é, o problema é que eu gastei tudo.
— Tudim?
— Tudim.
(Pausa dramática.)
— Então, compadre, eu vou levar o cavalo.
O sitiante ficou todo atrapalhado e perguntou:
— Mas o que você vai fazer com um cavalo morto?
— Vou rifar.
— O cavalo morto? Quem vai querer, compadre?!
— Ué, compadre, é só eu não contar que ele morreu.
“Isso não vai dar bom resultado”, pensou o sitiante, mas ficou quieto.
Juvêncio levou o corpo do Ventania para seu sítio.
Passado um mês, os dois se encontraram e o sitiante perguntou:
— Compadre, e o Ventania?!
— Rifei. Vendi quatrocentos bilhetes a vinte reais cada. Consegui sete mil, novecentos e oitenta reais.
— Eita, e ninguém reclamou?
— Só o ganhador.
— E o que você fez?
— Devolvi os vinte reais pra ele e ficou tudo certo.
5
Sei o que você está pensando.
Eu não pretendia comentar, mas vou.
Eu não pretendia comentar o que você está pensando não por pudor, mas porque é muito óbvio. É exatamente o que todos nós estamos pensando. É ou não é?
Num texto literário a obviedade sempre cai mal. Ela é trivial como um cavaleiro sobre um cavalo (me ocorreu essa comparação apenas pra não fugir do assunto). Num texto literário eu prefiro as lacunas, as elipses, as sutilezas, as reflexões implícitas: o cavaleiro galopando no ar, sem o cavalo, por exemplo. Ou o cavalo sobre o cavaleiro.
Mas aí já virou delírio kafkiano.
Tudo bem, vou comentar o que você está pensando. Não consigo resistir à tentação, afinal você está pensando exatamente o que todo mundo está pensando.
Juvêncio em Brasília.
É ou não é?
Você está pensando: “Ah, esse Juvêncio na câmara dos deputados, ou no senado, ou num ministério… Esse homem ia longe!”
Sabe por que esse pensamento não é nem um pouco surpreendente?
Porque de asa a asa Brasília está cheia de Juvêncios! Lotada!
Somente Brasília, não. São Paulo e Rio de Janeiro também. E todas as outras capitais. E todos os municípios deste glorioso país. São tantos Juvêncios do Oiapoque ao Chuí — milhões — que realmente não sei como eu não me chamo Juvêncio.
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Há inúmeros Juvêncios operando no mercado financeiro. No alto escalão das grandes corporações nacionais e multinacionais. Na cúpula de todos os partidos políticos e de todas as organizações religiosas. Na liderança das grandes emissoras de tevê. Na redação das revistas e dos jornais mais influentes. Até na Casa Branca e nas Nações Unidas, sinal de que o Brasil já exportou muito mais do que a bossa nova.
A índole juvenciana é nacional-universal, cósmica.
Juvêncio é — só pode ser — o protagonista desse outro caso do cavalo (agora sem o cavalo) que recebi por e-mail:
7
Pai: “Escolhi uma ótima moça pra você se casar”.
Filho: “Mas, pai, prefiro eu mesmo escolher a minha mulher”.
Pai: “Mas, meu filho, ela é a filha do Bill Gates!”
Filho: “Bem, nesse caso, eu aceito”.
Então o pai negociador vai encontrar o Bill Gates.
Pai: “Bill, eu tenho o marido ideal pra sua filha”.
Bill Gates: “Mas a minha filha é muito jovem pra casar”.
Pai: “Mas, Bill, esse jovem é o vice-presidente do Banco Mundial!”
Bill Gates: “Nesse caso, tudo bem”.
Finalmente o pai negociador vai ao presidente do Banco Mundial.
Pai: “Senhor presidente, eu quero recomendar um jovem pra ser o vice-presidente do Banco Mundial”.
Presidente: “Mas eu já tenho muitos candidatos a vice-presidente, mais do que o necessário”.
Pai: “Mas, senhor, esse jovem é o genro do Bill Gates!”
Presidente: “Nesse caso, ele pode começar amanhã mesmo”.
8
Recentes estudos antropológicos comprovam que uma pessoa sozinha — um náufrago numa ilha deserta — jamais será um Juvêncio. Mas onde há duas pessoas ou mais interagindo, sempre há pelo menos um Juvêncio.
Eles estão por toda parte.
Outra descoberta recente da ciência: existem muitos Juvêncios que, para sobreviver e triunfar num mundo tão competitivo, usam os disfarces mais camaleônicos.
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Numa pequena cidade do interior de São Paulo (Paraná, Goiás, Macapá, você decide) havia um pobre retardado que vivia de esmolas e pequenos biscates. Todo mundo tirava o maior sarro dele. Cada cidade do interior de São Paulo (Paraná, Goiás, Macapá, você decide) não tem seu idiota oficial? Então aí está. Ele era o idiota oficial dessa pequena cidade.
Diariamente, no final da tarde, o pessoal se reunia no bar em frente à igreja e chamava o bobo, que vinha todo babão. Então eles mostravam a ele na mão esquerda uma moeda de um real e na mão direita duas moedas de vinte e cinco centavos:
“Que mão você quer pra você?”
O bobo olhava a moeda de um real, olhava as duas moedas de vinte e cinco centavos, olhava a moeda de um real e sempre escolhia as duas moedas de vinte e cinco centavos.
Todo mundo no bar caía na risada.
Certo dia, com dó do coitado, um rapaz do grupo chamou o bobo e perguntou se ele ainda não havia percebido que as duas moedas valiam menos do que a outra.
— Eu sei — o bobo respondeu. — Juntas elas valem a metade da outra. Mas no dia em que eu escolher a outra moeda a brincadeira acaba e eu paro de ganhar as moedas.
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Que diamante multifacetado, a astúcia!
Tão nosso, tão brasileiro, o caso do bobo. Tão universal e tão brasileiro!