Quase-diario #110

Morreu Rubem Braga ontem. Fiz-lhe uma crônica para o próximo domingo n’O Globo. Quero fazer-lhe uma homenagem na Biblioteca Nacional
01/06/2009

20.12.90
Morreu Rubem Braga ontem. Fiz-lhe uma crônica para o próximo domingo n’O Globo. Quero fazer-lhe uma homenagem na Biblioteca Nacional. Converso com Tônia Carrero: levar atores na próxima quinta-feira (seria missa de 7º dia, se ele fosse religioso) para dizer poemas/crônicas dele.

Conta Tônia que RB internou-se para morrer, ao saber do câncer incurável. Pegou o carro, despediu-se da casa, do mundo (imagino-o) e foi ao hospital para morrer. Pediu ao Sérgio Carneiro (médico da boemia de Ipanema) para não prolongar-lhe a vida:

— Sou contra qualquer tipo de forma artificial de vida, inclusive a minha.

Consultou um médico alemão sobre sua vida. Ficaria 20 dias sofrendo e de cabeça para baixo. Não teria nenhuma alegria.

Pediu as melhores frutas da feira. Pediu para ninguém ir ao hospital, para ninguém “passar por lá”, inclusive Tônia. Escolheu seu amigo Pacote para acompanhá-lo na viagem a São Paulo, onde foi cuidar da cremação.

— Rubem me instituiu seu coveiro — disse ele. E quando o funcionário da cremação perguntou onde estava o corpo do morto a ser cremado, Rubem respondeu: “Está falando com ele”.

Deixou tudo organizado: apartamento para o filho Roberto e papéis. Queria que ele fosse logo para o apartamento. Roberto Marinho ofereceu-lhe todo o tratamento nos Estados Unidos, mas recusou. Morte digna.

31.05.91
Lisboa. Vim para o Prêmio Camões (com Márcio Souza e Jorge Fernandes), num júri que tinha também do lado português: Luiz Forjaz Trigueiros, David Mourão Ferreira, Arnaldo Saraiva. Demos o prêmio a José Craveirinha, de Moçambique, embora nosso candidato fosse Luandino Vieira.

Mas o júri, na parte portuguesa, achou que seria ruim o prêmio para Luandino, pois ele é do PMLA, e isto poderia ser mal entendido. Os portugueses preferem Craveirinha. Houve boa recepção entre os escritores conforme a imprensa, mas Luandino seria mais representativo, melhor, conquanto menos bem recebido.

(Nota: Luandino ganhou o Prêmio Camões em 2006, mas o recusou, “por motivos íntimos e pessoais”)

Com efeito, nesses dias a UNITA (Jonas Sawimbi) e o PMLA (Eduardo dos Santos) acabam de assinar um tratado de paz em Lisboa, na presença de Cavaco Silva (primeiro-ministro de Portugal), do Secretário Geral da ONU (Perez Cuellar), do secretário J. Backer (EUA) e do Ministro das Relações Exteriores da URSS.

Dezesseis anos de guerra. Os sinos de Lisboa soaram às 19 horas, no Rocio. Angolanos dançam. Os do PMLA celebram na embaixada de Angola; os da UNITA, num estádio. Portugal atinge maioridade política num momento de maturidade econômica e social. Andorinhas voam das torres ao som dos sinos de Lisboa, enquanto se celebra a festa.

— Aproveitando a estadia aqui em Lisboa, conversei por telefone com Saramago, que vinha de Barcelona e Andorra. Que coisa incrível o convento de Mafra reinventado por Saramago em O memorial do convento. Depois de seu livro, o turismo cresceu por ali.

Na porta do Convento, a uma vendedora de objetos, pergunto airosamente:

— Conhece Saramago?

— Não, nunca estive lá. Minha família é da Madeira e Lourenço Marques.

08.09.91
Ligia Marina me contou (reservadamente) que Fernando Sabino está escrevendo um romance sobre a experiência de Zélia Cardoso no governo. E que ela conta tudo. Tudo sobre Collor, Cabral, etc. Que vai ser um grande escândalo quando sair, que Fernando está mobilizadíssimo.

04.11.91
Essas duas semanas o país viveu o livro de SabinoZélia, uma paixão. Poucas vezes houve tanta unanimidade. O texto de Fernando é ruim, cheio de lugares-comuns e Zélia, uma deslumbrada. Ela, querendo entregar Bernardo Cabral, entregou-se. Relatou os casos amorosos seus, meio levianos e uma certa leviandade política. (…) O resultado foi desastroso. Embora estejam vendendo 200 mil exemplares, que rendem uns R$ 150 milhões (300 mil dólares), foram cancelados coquetéis e entrevistas dos dois.

04.11. 91
Darcy Ribeiro, oh simpática irresponsabilidade!, diz que os 50 mil livros do extinto Instituto Nacional do Livro, que através da Biblioteca Nacional doei para os CIEPs, são “um lixo”, que ele é que escolhe sua biblioteca. Autoritário e agressivo. Nem sabe quais são os livros doados.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho